Questão 1
Ubirajara T Schier
1. Explique o pensamento de Bacon sobre a ciência moderna no duplo movimento que ele enuncia: desenvolva sua crítica aos ídolos e as principais características do seu método.
Em seu aforisma XXXVIII, diz BACON:
“Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.” (BACON, pg.14)
e classifica esses ídolos em quatro gêneros principais (aforisma XXXIX):
“São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro (original: Idola Tribus. Idola Specus, Idola Fori e Idola Theatri)”. (BACON, pg.14)
primeiro gênero: Ídolos da Tribo. Segundo BACON:
“Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.” (BACON XLI, pg.14)
“Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm origem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou bem nas suas limitações, ou na sua contínua instabilidade; ou ainda na interferência dos sentimentos ou na incompetência dos sentidos ou no modo de receber impressões.” (BACON LII, pg.19)
Bacon refere-se como “Ídolos da Tribo” as limitações provenientes da própria natureza humana. Pode-se entender que a realidade, tal como ela é, é uma coisa. Outra coisa é a realidade percebida, esta por sua vez, condicionada e limitada à natureza humana. Em outras palavras, pode-se dizer que a natureza humana é um filtro, que filtra a realidade extraindo dela apenas a parte compreensível à mesma.
segundo gênero: Ídolos da Caverna. Segundo BACON:
“Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.” (BACON XLII, pg.14-15)
“Os ídolos da caverna têm origem na peculiar constituição da alma e do corpo de cada um; e também na educação, no hábito ou em eventos fortuitos. Como as suas espécies são múltiplas e várias, indicaremos aquelas com que se deve ter mais cuidado, por se tratar das que têm maior alcance na turbação da limpidez do intelecto.” (BACON LIII, pg.19-20)
“Ídolos da Caverna” são os filtros da realidade que particulares à cada indivíduo. As experiências e crenças de cada pessoa, em resumo tudo o que a pessoa é e acredita em determinado instante funciona também como filtro da realidade percebida. Existe assim, a versão da realidade como ela é, seguida de uma versão reduzida da realidade, a que podemos chamar de “versão da natureza humana”. Sobre esta versão já reduzida, então temos a versão da realidade do indivíduo, que é a versão que cada indivíduo constrói acerca da versão da natureza humana percebida.
terceiro gênero: “Ídolos do Foro”. Segundo BACON (XLIII):
“Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso,1 2 e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.” (BACON XLIII, pg.15)
“Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências sofisticas e inativas. As palavras, tomando quase sempre o sentido que lhes inculca o vulgo seguem a linha de divisão das coisas que são mais potentes ao intelecto vulgar. Contudo, quando o intelecto mais agudo e a observação mais diligente querem transferir essas linhas para que coincidam mais adequadamente com a natureza, as palavras se opõem. Daí suceder que as magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com freqüência, acabem em controvérsias em torno de palavras e nomes, caso em que melhor seria (conforme o uso e a sabedoria dos matemáticos) restaurar a ordem, começando pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente esse mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, posto que as próprias definições constam de palavras e as palavras engendram palavras. Donde ser necessário o recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries, como depois vamos enunciar, quando se expuser o método e o modo de constituição das noções e dos axiomas.” (BACON LIX, pg.21-22)
Como “Ídolos do Foro”, para Bacon, pode-se entender como sendo uma “versão social da realidade”, construída a partir das relações entre os indivíduos. É a partir das interações entre as diferentes versões individuais e singulares da realidade que ocorrem nas relações entre os indivíduos que se constroem as versões sociais da realidade. Em outras palavras, é nas relações que as realidades da natureza humana, individualizadas, se combinam, formando versões socialmente aceitas pelos grupos de individuos que se relacionam e as constituem.
quarto gênero: “Ídolos do Teatro”. Segundo BACON (XLIV):
“Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência.” (BACON, pg.15-16)
“Por sua vez, os ídolos do teatro não são inatos, nem se insinuaram às ocultas no intelecto, mas foram abertamente incutidos e recebidos por meio das fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração. Porém, tentar e sustentar a sua refutação não seria consentâneo com o que vimos afirmando. Pois, se não estamos de acordo nem com os princípios nem com as demonstrações, não se admite qualquer argumentação. O que, ademais, é um favor dos fados, pois dessa forma é respeitada a glória dos antigos. Nada se lhes subtrai, já que se trata de uma questão de método. Um coxo (segundo se diz) no caminho certo, chega antes que um corredor extraviado, e o mais hábil e veloz, correndo fora do caminho, mais se afasta de sua meta, O nosso método de descobrir a verdadeira ciência é de tal sorte que muito pouco deixa à agudeza e robustez dos engenhos; mas, ao contrário, pode-se dizer que estabelece equivalência entre engenhos e intelectos. Assim como para traçar uma linha reta ou um círculo perfeito, perfazendo-os a mão, muito importam a firmeza e o desempenho, mas pouco ou nada importam usando a régua e o compasso. O mesmo ocorre com o nosso método. Ainda que seja de utilidade nula a refutação particular de sistemas, diremos algo das seitas e teorias e, a seguir, dos signos exteriores que denotam a sua falsidade; e, por último, das causas de tão grande infortúnio e tão constante e generalizado consenso no erro. E isso para que se torne menos difícil o acesso à verdade e o intelecto humano com mais disposição se purifique e os ídolos possa derrogar. ” (BACON LXI, pg.23-24)
De uma maneira geral, Bacon refere-se as Ídolos do Teatro como sendo versões da realidade de alguns indivíduos que são apresentadas como certas e verdadeiras com tal convicção, que, quando levadas em consideração por outros indivíduos, podem levar a resultados errôneos, afastando ainda mais indivíduo da realidade que ele deseja compreender. Bacon defende a aplicação de um método científico seguro, empírico, por meio do qual garante que o resultado a ser alcançado será sempre muito mais próximo da realidade do que os caminhos traçados por meios de suposições e análises subjetivas sem comprovação empírica.
“Mas em geral supõe-se para matéria da filosofia ou muito a partir de pouco ou pouco a partir de muito. Assim, a filosofia se acha fundada, em ambos os casos, numa base de experiência e história natural excessivamente estreita e se decide a partir de um número de dados muito menor que o desejável. Assim, a escola racional se apodera de um grande número de experimentos vulgares, não bem comprovados e nem diligentemente examinados e pensados, e o mais entrega à meditação e ao revolver do engenho.” (BACON LXII, pg.25)
Na citação acima Bacon critica então as verdades que são fundamentadas com o que se pode dizer “uma fraca base empírica”.
“O mais conspícuo exemplo da primeira é o de Aristóteles, que corrompeu com sua dialética a filosofia natural: ao formar o mundo com base nas categorias; ao atribuir à alma humana, a mais nobre das substâncias, um gênero extraído de conceitos segundos;2 2 ao tratar da questão da densidade e da rarefação, com que se indica se os corpos ocupam maiores ou menores extensões, conforme suas dimensões, por meio da fria distinção de potência e ato; ao conferir a cada corpo apenas um movimento próprio, afirmando que, se o corpo participa de outro movimento, este provém de uma causa externa; ao impor à natureza das coisas inumeráveis distinções arbitrárias, mostrando-se sempre mais solícito em formular respostas e em apresentar algo positivo nas palavras do que a verdade íntima das coisas. Isso se torna mais manifesto quando se compara a sua filosofia com as filosofias que eram mais celebradas entre os gregos. Sem dúvida, as homeomerias, de Anaxágoras; os átomos, de Leucipo e Demócrito; o céu e a terra, de Parmênides; a discórdia e a amizade, de Empédocles; a resolução dos corpos na adiáfora natureza do fogo e o seu retorno ao estado sólido, de Heráclito, sabem a filosofia natural, a natureza das coisas, experiência e corpos. Mas na Física, de Aristóteles, na maior parte dos casos, não ressoam mais que as vozes de sua dialética. Retoma-a na sua Metafísica, sob nome mais solene, e mais como realista que nominalista. A ninguém cause espanto que no Livro dos Animais e nos Problemas, e em outros tratados, ocupe-se freqüentemente de experimentos. Pois Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência.” (BACON LXIII, pg.25-26)
Reforçando a citação anterior, Bacon faz uma crítica direta às conclusões de Aristóteles que, basicamente, além de estarem também fundamentadas sobre ma “fraca base empírica”, parte das conclusões extraídas sem base empírica e, a partir destas, então busca por fenômenos que as justifiquem.
As questões envolvendo os “Ídolos” citados servem como justificativa para constituição de um método científico que possibilite uma investigação isenta das distorções causadas pela interferência deste “Ídolos” na investigação acerca de um fenômeno real.
Primeiro Passo do Método: A Tábua de Presença
“A investigação das formas assim procede: sobre uma natureza dada deve-se em primeiro lugar fazer uma citação perante o intelecto de todas as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se encontrem em matérias dessemelhantes.4 7 E essa coleção deve ser feita historicamente, sem especulações prematuras ou qualquer requinte demasiado.” (BACON, Livro II, XI, pg.94)
Esta etapa consistem em relacionar de forma sistemática, todas as situações e circunstâncias em que percebe-se o fenômeno em observação. É necessário que sejam coletados e registrados nessa etapa o máximo de evidências de ocorrência do fenômeno.
Segundo Passo do Método: A Tábua de Ausência
“Em segundo lugar, deve-se fazer uma citação perante o intelecto, das instâncias privadas da natureza dada, uma vez que a forma, como já foi dito, deve estar ausente quando está ausente a natureza, bem como estar presente quando a natureza está presente.
Contudo, se se fosse examinar todas as instâncias, a investigação iria ao infinito. Por isso, é necessário que se limite o recolhimento das instâncias negativas em correspondência com as positivas e considerem-se as privações apenas naqueles objetos muito semelhantes a aqueles em que elas estão presentes e são manifestas.5 3 E a esta resolvemos chamar de Tábua de desvio (ou declinação) ou de ausência em fenômenos próximos.” (BACON, Livro II, XII, pg.96)
Esta etapa consiste em observar – ao contrário da primeira etapa – todas as situações e circunstâncias em que não se percebe o fenômeno em observação. É necessário, da mesma forma, que sejam coletados e registrados nessa etapa o máximo de evidências de ocorrência do fenômeno.
Terceiro Passo do Método: Tábua de Comparação
“Em terceiro lugar, é necessário fazer-se citações perante o intelecto das instâncias cuja natureza, quando investigada, está presente em mais ou em menos, seja depois de ter feito comparação do aumento e da diminuição em um mesmo objeto, seja depois de ter feito comparação em objetos diversos. Pois sendo a forma de uma coisa a coisa em si mesma e posto que a coisa difere da forma tanto quanto difere a aparência da existência, o exterior do interior e o relativo ao homem do relativo ao universo, segue-se necessariamente que se não pode tomar uma natureza pela verdadeira forma, a não ser que sempre decresça quando decresce a referida natureza e, igualmente, sempre aumente quando aumenta a natureza. A esta tábua denominamos Tábua de Graus ou de Comparação.” (BACON, Livro II, XIII, pg.106)
Pode-se dizer que esta etapa é complementar à primeira, pois consiste em verificar em que grau ocorre (ou que percebe-se o potencial para que ocorra) os fenômenos observados, registrando também as características, condições e circunstâncias destas ocorrências.
“Objetivo e oficio destas três tábuas é o de fazer uma citação de instância perante o intelecto (como usualmente as designamos). Uma vez feita a citação, é necessário passar-se à prática da própria indução. É necessário, com efeito, descobrir-se, considerando atentamente as tábuas e cada uma das instâncias, uma natureza tal que sempre esteja presente quando está presente a natureza dada, ausente quando aquela está ausente, e capaz de crescer e decrescer acompanhando-a; e seja, como já se disse antes, uma limitação da natureza mais comum. Assim, se a mente procura desde o início descobrir essa natureza afirmativamente, como ocorre quando abandonada a si mesma, ocorrem fantasias, meras opiniões e noções mal determinadas, e axiomas carentes de contínuas correções, se não se quiser, segundo o costume das escolas, combater em defesa de falsidade. Mas certamente os resultados serão melhores ou piores conforme a capacidade e a força do intelecto que opera. ” (BACON, Livro II, XV, pg.115-116).
Segundo Bacon, o objetivo das tábuas é proporcionar uma base empírica consistente sobre a qual o observador possa, por meio da indução, verificar quais são as regras gerais, a natureza, que determinam a ocorrência ou não dos fenômenos observados bem como, também, as regras que possibilitem determinar em que grau/intensidade eles ocorrem.
Concluindo, o duplo movimento do autor consiste em identificar as distrações que nos afastam da verdade (Ídolos) para depois determinar o método que nos aproxima dela.
REFERÊNCIAS:
BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Livros Grátis.
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