A intersecção entre filosofia e arte: uma co-criação?

A intersecção entre filosofia e arte: uma co-criação?

Ubirajara T. Schier – Estética 2025/2

A partir dos textos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, esta reflexão propõe resgatar um dos problemas centrais da estética em sua filosofia: qual é a relação entre arte e pensamento? Em vez de conceber a arte como objeto da filosofia — algo a ser julgado, interpretado ou compreendido —, os autores propõem um deslocamento radical. Trata-se, agora, de pensar com a arte. Mas o que exatamente isso significa? E, mais importante: será que essa fórmula dá conta do que se passa no cruzamento entre razão e sensação?

No artigo “Pensar com a arte: por uma estética da sensação”, Diego Marques Cavalcante trabalha diretamente com a noção de bloco de sensações, desenvolvida por Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?. O autor mostra como esse conceito rompe com toda compreensão da arte como representação ou expressão subjetiva. Em vez disso, a arte é pensada como criação de afetos e perceptos, que não pertencem a um sujeito, tampouco a um objeto. Como escrevem Deleuze e Guattari:

“A arte não é o meio de comunicar sentimentos; ela é a criação de blocos de sensações: perceptos e afetos.” (O que é a filosofia?, p. 181)

Cavalcante evidencia que o papel da filosofia, nesse contexto, não é interpretar a arte, mas criar conceitos capazes de compor-se com os afetos e perceptos artísticos, num movimento de experimentação conceitual. Pensar com a arte, assim, não é um método, mas um gesto criativo que se dá no plano de imanência, onde a filosofia se contamina com a potência do sensível e deixa de ser normativa para tornar-se intensiva. “O plano de imanência do pensamento é o plano de composição dos conceitos”, afirmam os autores (p. 39), e é nesse plano comum que arte e filosofia podem se encontrar.

Em “Deleuze e a estética como um problema para o pensamento”, Leandro Matos aprofunda essa perspectiva ao mostrar como a estética não é um objeto do pensamento, mas um desafio à própria estrutura do pensar. O texto parte da crítica de Deleuze à “imagem dogmática do pensamento” — aquela que pressupõe um sujeito racional capaz de reconhecer verdades evidentes. Matos evidencia que a estética, em Deleuze, tem o poder de desestabilizar essa imagem, ao confrontar o pensamento com aquilo que lhe escapa: o caos, o fora, o sensível. Como afirmam os autores:

“É sempre por intermédio de algo forçado que o pensamento começa a pensar — algo intolerável, um fora do pensamento que o afeta.” (O que é a filosofia?, p. 65)

Pensar, aqui, só ocorre quando algo força o pensamento a pensar, e a arte seria precisamente uma dessas forças. Tal experiência não é meramente emocional, mas estruturante: exige que o pensamento se refaça a partir do encontro com o sensível. A arte, então, não fornece temas; ela reconfigura o próprio gesto de pensar. O conceito, nesse cenário, não se opõe à sensação: torna-se seu companheiro de composição, na criação de territórios inéditos de sentido.

Esses dois textos constroem, em conjunto, uma proposta conceitual sólida: a arte e a filosofia se encontram num plano comum, onde ambas são modos de criação, e não de explicação. Nesse plano, “pensar com a arte” nomeia o gesto em que razão e sensação se atravessam, compondo um processo de criação recíproca.

Contudo, acredito que o conceito de “pensar com a arte” ainda carrega uma limitação conceitual. O próprio enunciado sugere uma assimetria: é a filosofia que pensa, enquanto a arte oferece a matéria com a qual se pensa. Mesmo quando não há dominação, permanece uma leve inclinação da filosofia como centro articulador. A meu ver, isso ainda não dá conta do que se passa no ponto de intersecção entre razão e sensação.

Proponho, em contraste, nomear esse espaço como co-criação: não um diálogo entre instâncias distintas, mas um acontecimento intensivo, onde filosofia e arte deixam de operar como disciplinas separadas para tornarem-se forças criadoras que se atravessam mutuamente, produzindo algo novo, orgânico e irredutível. A co-criação não é síntese nem colaboração: é o ponto de emergência em que o conceito e a sensação ainda não se separaram, mas já atuam juntos naquilo que fazem nascer.

Uma analogia conceitual ajuda a tornar essa diferença mais visível: trata-se da distinção entre interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. A interdisciplinaridade envolve colaboração entre disciplinas distintas — como filosofia, arte, ciências sociais —, mas cada uma preserva sua identidade e seus métodos reconhecíveis. De maneira análoga, o conceito de “pensar com a arte” opera, muitas vezes, de forma interdisciplinar: a filosofia continua sendo o locus do pensamento, e a arte atua como provocação ou ampliação sensível. Há troca e deslocamento, mas sem ruptura estrutural.

Mesmo quando a filosofia se dispõe a “pensar com a arte”, o gesto ainda carrega o risco de reabsorver a arte dentro de uma lógica racional — como se o pensamento fosse capaz de domesticar a força do sensível, mesmo quando se deixa afetar por ela. Inversamente, também seria insuficiente imaginar que a arte poderia absorver a razão como um elemento estético subordinado. A co-criação só acontece quando ambas as instâncias — razão e sensação — se expõem mutuamente ao risco de se desfazerem em sua forma original, abrindo espaço para um modo de criação em que nenhuma domina, nenhuma serve, nenhuma representa a outra. O que se produz aí não é o prolongamento de um campo no outro, mas o nascimento de algo que não é mais arte nem mais filosofia, e que também não pode ser reduzido a uma soma ou intersecção entre elas. Trata-se de um território ainda sem nome, cujas regras se inventam no próprio ato de criar.

A transdisciplinaridade, por sua vez, dissolve as fronteiras disciplinares para permitir o surgimento de um saber novo, inominável, que transcende os limites conceituais e metodológicos. É nesse movimento que situo a co-criação: não como parceria, mas como acontecimento em que razão e sensação deixam de ser funções atribuídas a campos distintos, e passam a emergir como efeitos de um plano comum de criação. Nessa zona intensiva, arte e filosofia não dialogam: elas se desfazem como formas autônomas e se recombinam como forças vivas.

Se “pensar com a arte” é um gesto filosófico legítimo e potente, o conceito de co-criação propõe um desvio ainda mais radical: pensar e sentir deixam de ser meios e tornam-se efeitos do próprio acontecimento criador. A co-criação é esse acontecimento — o “?” — que pulsa entre arte e filosofia, sem se deixar reduzir a nenhuma delas, mas dando origem às duas.


Conclusão pessoal

Acredito que o espaço da co-criação entre arte e filosofia deve permanecer, por princípio, subjetivo e incognoscível. Tentativas de defini-lo, classificá-lo ou aprisioná-lo em categorias conceituais correm o risco de anular justamente aquilo que ele torna possível: a emergência de algo verdadeiramente novo, inesperado e irrepetível. Seu valor reside no fato de não se deixar dizer plenamente, e de escapar a toda tentativa de fixação.

Se esse espaço existe, ele só pode ser habitado por um tipo raro de criador — alguém que não seja apenas filósofo, nem apenas artista, mas que incorpore simultaneamente a força do pensamento e a potência da sensação. Penso nesse ser como uma figura talvez mitológica, como o centauro: metade homem, metade cavalo, mas que não é redutível a nenhuma das partes. Ele não é uma mistura, mas um modo de existência próprio, que emerge da fusão viva entre dois mundos que nele se tensionam sem se anular.

Na perspectiva da co-criação, o centauro torna-se imagem de um devir possível: nem filósofo que se serve da arte, nem artista que flerta com o conceito, mas um criador transfigurado, que opera num plano onde pensar e sentir já não se distinguem como funções, mas se afirmam como forças inseparáveis.

A co-criação, assim, não é um método nem uma técnica, mas um estado de ser criador, intensivo, vital e singular. E talvez o mais importante seja justamente não capturá-la — mas deixar que ela aconteça, quando razão e sensação deixam de disputar primazia e se entregam, juntas, ao risco de inventar.


📚 Referências (ABNT)

CAVALCANTE, Diego Marques. Pensar com a arte: por uma estética da sensação. Revista Entre-Lugar, v. 11, n. 21, 2020. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/entrelugar/article/view/2925. Acesso em: 3 nov. 2025.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

MATOS, Leandro. Deleuze e a estética como um problema para o pensamento. Prometeus – Filosofia em Revista, v. 12, n. 25, 2019. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/view/10841. Acesso em: 3 nov. 2025.

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