Responsabilidade e Julgamento – Hannah Arendt

PENSAMENTO E REFLEXÕES MORAIS

Falar sobre pensar me parece tão presunçoso que lhe devo, creio eu, uma justificativa. Há alguns anos, em meu relatório sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, falei da “banalidade do mal”. Com essa expressão, eu não me referia a uma teoria ou doutrina, mas a algo absolutamente factual, o fenômeno dos atos criminosos, cometidos em larga escala, que não podiam ser atribuídos a nenhuma particularidade de mal, patologia ou convicções ideológicas de pessoas, cuja única característica pessoal distintiva era talvez uma superficialidade extraordinária. No entanto, apesar da natureza monstruosa dos atos, o agente não era um monstro nem um demônio, e a única característica específica que se pôde detectar em seu passado, bem como em sua conduta durante o julgamento e o exame policial preliminar, era algo inteiramente negativo: não era estupidez, mas uma curiosa e absolutamente genuína incapacidade de pensar. Ele atuou em seu papel de proeminente criminoso de guerra exatamente como sob o regime nazista: não teve a menor dificuldade em aceitar um conjunto de regras totalmente diferente. Ele sabia que o que antes considerava seu dever agora era definido como crime, e aceitou esse novo código de julgamento como se fosse apenas mais uma regra de discurso. Acrescentara algumas frases novas ao seu já limitado estoque de estereótipos e só se viu completamente desamparado quando se deparou com uma situação em que nenhuma delas se aplicava — como, no caso mais grotesco, quando teve que fazer um discurso sob a forca e foi forçado a recorrer aos lugares-comuns usados ​​em orações fúnebres, que eram inaplicáveis ​​no seu caso por não ser o sobrevivente. Não lhe ocorrera pensar em quais seriam suas últimas palavras, no caso de uma sentença de morte que sempre esperara, assim como suas inconsistências e flagrantes contradições ao longo do julgamento não o incomodaram. Clichês, clichês, adesão a convenções e códigos padronizados de conduta e expressão cumprem a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade — isto é, das exigências que todos os eventos e fatos impõem à nossa atenção ponderada em virtude de sua própria existência. Se fôssemos sempre sensíveis a essa demanda, logo estaríamos exaustos; Eichmann era único apenas por ignorar todas essas demandas.

Essa ausência total de pensamento chamou minha atenção. É possível cometer o mal — tanto o pecado de omissão quanto o de comissão — quando faltam não apenas “motivos repreensíveis” (como a lei os chama), mas também qualquer outro tipo de motivo, o menor vislumbre de interesse ou volição? A maldade, seja qual for a nossa definição — “estar decidido a ser um vilão” — não é uma condição necessária para praticar o mal? Nossa faculdade de julgamento, de distinguir o bem do mal, o belo do feio, depende da nossa faculdade de pensamento? Existe uma coincidência entre a incapacidade de pensar e a falha desastrosa do que comumente chamamos de consciência? Surgiu a seguinte questão: pode a atividade de pensar, em si mesma, o hábito de examinar e refletir sobre tudo o que acontece ou atrai a atenção, independentemente de seu conteúdo ou resultados específicos, ser uma atividade de tal natureza que “condiciona” as pessoas contra o mal (a própria palavra “consciência”, em todo caso, aponta nessa direção, na medida em que significa “conhecer comigo mesmo e por mim mesmo”, um tipo de conhecimento que se atualiza em todo processo de pensamento)? Por fim, a urgência dessas questões não é reforçada pelo fato bem conhecido e alarmante de que apenas pessoas boas são capazes de ter uma má consciência, enquanto este é um fenômeno muito raro entre criminosos genuínos? Uma boa consciência existe apenas como a ausência de uma má consciência.

Tais eram os problemas. Em outras palavras, e usando a linguagem kantiana, após ser atingido por um fenômeno — a quaestio facti — que, gostasse ou não, “me colocou na posse de um conceito” (a banalidade do mal), não pude deixar de evocar a quaestio juris e me perguntar “com que direito eu a possuía e a usava?”

I

Levantar questões como: “O que é pensar?”, “O que é o mal?”, apresenta dificuldades. São questões que pertencem à filosofia ou à metafísica, termos que designam um campo de investigação que, como todos sabemos, caiu em desuso. Se fosse simplesmente uma questão de críticas positivistas ou neopositivistas, talvez nem precisássemos nos preocupar com elas.* Nossa dificuldade em levantar essas questões advém menos daqueles que, de alguma forma, as consideram “sem sentido” do que daqueles a quem a crítica é dirigida. Pois, assim como a crise da religião atingiu seu ápice quando os teólogos, e não a antiga massa de descrentes, começaram a falar sobre “a morte de Deus”, a crise da filosofia e da metafísica se manifestou quando os próprios filósofos começaram a declarar o fim da filosofia e da metafísica. Isso pode ter suas vantagens; confio que terá, uma vez que se entenda que esses “finais” não significam realmente que Deus “morreu” — um absurdo óbvio sob qualquer ponto de vista —, mas sim que a maneira como Deus tem sido pensado há milênios não é mais convincente. Nem significam que as antigas questões que acompanham o homem desde seu aparecimento na Terra se tornaram “sem sentido”, mas sim que a maneira como foram formuladas e resolvidas perdeu sua validade.

O que, no entanto, chegou ao fim foi a distinção básica entre o sensível e o suprassensível, juntamente com a ideia, tão antiga quanto Parmênides, de que tudo o que não é obtido pelos sentidos — Deus, o Ser, os Primeiros Princípios e Causas (archai) ou as Ideias — é mais real, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, e que isso não está apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos sentidos. O que “morreu” não foi apenas a localização dessas “verdades eternas”, mas a própria distinção. Contemporaneamente, com uma voz cada vez mais estridente, os poucos defensores da metafísica nos alertaram para o perigo do niilismo inerente a esse desenvolvimento; e, embora raramente o invoquem, têm um argumento importante a seu favor: é de fato verdade que, uma vez descartado o reino suprassensível, seu oposto, o mundo das aparências, como tem sido entendido há séculos, também é anulado. O sensível, como os positivistas ainda o concebem, não pode sobreviver à morte do suprassensível. Ninguém viu isso melhor do que Nietzsche, que, com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus em Zaratustra, criou tanta confusão sobre essas questões. Em uma passagem significativa de “Crepúsculo dos Ídolos”, ele esclarece o significado da palavra Deus em Zaratustra: é um mero símbolo do reino do suprassensível, tal como entendido pela metafísica; e então, substituindo a palavra Deus por “mundo verdadeiro”, afirma: “Eliminamos o mundo verdadeiro: que mundo resta? Talvez o mundo aparente?… Não! Ao eliminar o mundo verdadeiro, eliminamos também o mundo aparente.”

Essas “mortes” modernas — de Deus, da metafísica, da filosofia e, consequentemente, do positivismo — podem ser eventos de grande importância, mas, afinal, são eventos de pensamento e, embora se relacionem intimamente com nossos modos de pensar, nada têm a ver com nossa capacidade de pensar, isto é, com o simples fato de o homem ser um ser pensante. E com isso quero dizer que o homem tem uma inclinação e, além disso, uma necessidade de não ser pressionado por necessidades vitais mais urgentes (a “necessidade de razão” kantiana), de pensar além dos limites do conhecimento, de usar suas capacidades intelectuais, o poder de seu cérebro, como algo mais do que meros instrumentos para conhecer e fazer. Nosso desejo de saber, seja ele decorrente de nossas necessidades práticas e perplexidades teóricas ou de simples curiosidade, pode ser satisfeito quando alcançamos o fim proposto; E enquanto nossa sede por conhecimento permanecer insaciável, dada a imensidão do desconhecido, a ponto de cada região do conhecimento abrir novos horizontes cognoscíveis, a atividade deixará para trás um tesouro crescente de conhecimento, fixado e armazenado por cada civilização como parte integrante de seu mundo. A atividade de conhecer é uma atividade de construção de mundos, assim como a atividade de construir casas. A inclinação ou necessidade de pensar, por outro lado, mesmo que não tenha surgido de nenhum tipo de “questões últimas” metafísicas tradicionalmente respeitadas, porém irrespondíveis, não deixa nada tão tangível para trás, nem pode ser silenciada pelas intuições supostamente definitivas dos “sábios”. A necessidade de pensar só pode ser satisfeita pensando, e os pensamentos que tive ontem satisfarão esse desejo hoje somente porque posso pensá-los “de novo”.

Devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer, entre a razão, o impulso de pensar e compreender, e o intelecto, que deseja e é capaz de conhecimento certo e verificável. O próprio Kant acreditava que a necessidade de pensar além dos limites do conhecimento se originava apenas das antigas questões metafísicas — Deus, liberdade e a imortalidade da alma — e que era necessário “abolir o conhecimento para dar lugar à crença”; e que, ao fazê-lo, ele havia lançado as bases para uma futura “metafísica sistemática” como um “legado deixado à posteridade”. Mas isso apenas demonstra que Kant, ainda preso à tradição metafísica, nunca teve plena consciência do que havia feito, e seu “legado deixado à posteridade” tornou-se, na realidade, a destruição de qualquer possibilidade de fundar sistemas metafísicos. Como a capacidade e a necessidade do pensamento não se limitam de forma alguma a um objeto específico, ele jamais será capaz de responder a questões como as que a razão propõe e conhece. Kant não “negou o conhecimento”, mas sim o separou do pensamento e abriu espaço não para a fé, mas para o pensamento. Na realidade, o que ele faz é, como ele mesmo sugeriu certa vez, “remover os obstáculos que a razão coloca em seu próprio caminho”.

Em nosso contexto e para nossos propósitos, essa distinção entre conhecer e pensar é crucial. Se a capacidade de distinguir o certo do errado tem algo a ver com a capacidade de pensar, então devemos ser capazes de “exigir” seu exercício de qualquer pessoa sã, independentemente de seu grau de erudição ou ignorância, inteligência ou estupidez. Kant — quase o único entre os filósofos nesse sentido — estava profundamente preocupado com as implicações morais da visão comum de que a filosofia é privilégio de poucos. Consequentemente, ele certa vez observou: “A estupidez é causada por um coração mau”, uma afirmação que não é verdadeira. A incapacidade de pensar não é estupidez; podemos encontrá-la em pessoas muito inteligentes, e o mal dificilmente é sua causa, mesmo porque a ausência de pensamento e a estupidez são muito mais comuns do que o mal. O problema reside precisamente no fato de que um coração mau, um fenômeno relativamente raro, não é necessário para causar um grande mal. Portanto, em termos kantianos, prevenir o mal exigiria filosofia, o exercício da razão como faculdade do pensamento.

O que constitui um grande desafio, mesmo que assumamos e acolhamos o declínio das disciplinas, filosofia e metafísica, que por muitos séculos monopolizaram essa faculdade. A principal característica do pensamento é que ele interrompe toda ação, toda atividade ordinária, seja ela qual for. Por mais equivocadas que as teorias dos dois mundos possam ter sido, elas tiveram experiências genuínas como ponto de partida, porque é verdade que, no momento em que começamos a pensar, não importa o que seja, paramos todo o resto e, por sua vez, esse todo o resto interrompe o processo de pensar; é como se estivéssemos nos movendo em mundos diferentes. Agir e viver em seu sentido mais geral de inter homines esse, “estar entre meus semelhantes” — o equivalente latino de estar vivo — realmente impede o pensamento. Como Valéry disse certa vez: “Tantót je suis, tantót je pense — ‘Às vezes penso, às vezes sou'”.

Intimamente ligado a essa situação está o fato de que o pensamento sempre lida com objetos ausentes, removidos da percepção sensorial direta. Um objeto de pensamento é sempre uma re-representação, isto é, algo ou alguém que está realmente ausente e presente apenas à mente, que, em virtude da imaginação, pode torná-lo presente na forma de uma imagem.* Em outras palavras, quando penso, saio do mundo das aparências, mesmo que meu pensamento tenha a ver com objetos comuns dados aos sentidos e não com objetos invisíveis como, por exemplo, conceitos ou ideias, o antigo domínio do pensamento metafísico. Para pensarmos em alguém, essa pessoa deve estar removida de nossos sentidos; enquanto permanecermos juntos, não podemos pensar nela, mesmo que possamos reunir impressões que mais tarde serão alimento para o pensamento; pensar em alguém que está presente envolve nos remover sub-repticiamente de sua companhia e agir como se ela não estivesse mais lá.

Essas observações revelam por que o pensamento, a busca por significado — em oposição à sede por conhecimento científico — era percebido como “antinatural”, como se, sempre que os humanos começassem a pensar, estivessem se engajando em uma atividade contrária à condição humana. Pensar como tal, não apenas pensar sobre eventos ou fenômenos extraordinários ou sobre as antigas questões da metafísica, mas também qualquer reflexão em que nos engajamos e que não sirva ao conhecimento e não seja guiada por fins práticos, está, como Heidegger já apontou, “fora da ordem”. De fato, há o fato curioso de que sempre houve humanos que escolheram o bios theórétikos como modo de vida, o que não é um argumento contra a atividade de estar “fora da ordem”. Toda a história da filosofia, que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o próprio processo de pensar, é atravessada por uma luta interna entre o senso comum humano, aquele sentido supremo que adapta nossos cinco sentidos a um mundo comum e nos permite orientar-nos nele, e a faculdade do pensamento, em virtude da qual os seres humanos deliberadamente se distanciam dele.

E essa faculdade não é apenas aquela da qual “nada resulta” para os propósitos do curso ordinário das coisas, na medida em que seus resultados permanecem incertos e inverificáveis, mas, em certo sentido, também é autodestrutiva. Na privacidade de suas notas póstumas, Kant escreveu: “Não aprovo a regra de que, se o uso da razão pura demonstrou algo, não se deve duvidar de seus resultados, como se fosse um axioma sólido”; e “Não compartilho da opinião […] de que não se deve duvidar depois de se ter convencido de algo. No contexto da filosofia pura, isso é impossível. Nosso espírito tem uma aversão natural a isso” (grifo meu). Disto se segue que a tarefa de pensar é como o trabalho de Penélope, que todas as manhãs desvendava o que havia feito na noite anterior.

Para reformular nosso problema, a estreita conexão entre a capacidade ou incapacidade de pensar e o problema do mal, resumirei minhas três principais proposições.

Primeiro, se tal conexão existe, então a faculdade de pensar, distinta da sede de conhecimento, deve ser atribuída a todos e não pode ser privilégio de poucos. Segundo, se Kant estiver certo e a faculdade de pensar tiver uma “aversão natural” a aceitar seus próprios resultados como “axiomas sólidos”, então não podemos esperar da atividade de pensar quaisquer comandos ou proposições morais, qualquer código de conduta, e muito menos uma definição nova e dogmática de certo e errado. Terceiro, se é verdade que pensar tem a ver com o invisível, segue-se que está fora da ordem porque normalmente nos movemos em um mundo de aparências, onde a experiência mais radical de desaparecimento é a morte. Tem-se argumentado frequentemente que o dom de se preocupar com coisas que não aparecem tem um preço: torna o poeta ou pensador cego para o mundo visível. Considere Homero, a quem os deuses concederam esse dom divino, deixando-o cego; pense no Fédon de Platão, onde os filósofos se apresentam à maioria, àqueles não dedicados à filosofia, como pessoas em busca da morte. E Zenão, o fundador do estoicismo, que, ao perguntar ao Oráculo de Delfos como alcançar uma vida melhor, foi instruído a “assumir a cor dos mortos”.

Daí a pergunta inevitável: como algo relevante para o mundo em que vivemos pode ser derivado de um empreendimento sem resultados? Se pode haver uma resposta, ela só pode vir da própria atividade de pensar, o que significa que devemos rastrear experiências, não doutrinas. E onde devemos procurar essas experiências? O “todos” que pedimos para pensar não escreve livros; eles têm coisas mais urgentes para fazer. E os poucos que Kant chamou de “pensadores profissionais” nunca foram particularmente ávidos por escrever sobre a experiência em si, talvez porque soubessem que pensar, por natureza, é sem resultados. E porque seus livros e doutrinas foram inevitavelmente construídos com um olho na maioria, que deseja ver resultados e não se preocupa em traçar distinções entre pensar e conhecer, entre significado e verdade. Não sabemos quantos pensadores “profissionais”, cujas doutrinas formam a tradição filosófica e metafísica, tinham dúvidas sobre a validade ou mesmo a possível falta de sentido de seus resultados. Conhecemos apenas a rejeição arrogante de Platão (na Sétima Carta) do que outros proclamavam como suas doutrinas:

Sei que outros escreveram sobre os mesmos assuntos, mas quem eram eles? Eles nem sequer se conhecem […] não podem, de fato, ser reduzidos à expressão, como acontece com outros ramos do conhecimento; com isso em mente, nenhuma pessoa inteligente se arriscará a confiar seus pensamentos a esse frágil meio de expressão, especialmente quando ele precisa ser fixado, como acontece com a palavra escrita.

II

O problema é que, se poucos pensadores nos revelaram o que os levou a pensar, menos ainda se deram ao trabalho de descrever e examinar sua experiência de pensar. Dada essa dificuldade, e não estando disposto a confiar em nossas próprias experiências devido ao seu óbvio perigo de arbitrariedade, proponho buscar um modelo, um exemplo que, ao contrário dos pensadores profissionais, possa ser representativo do nosso “cada um”, por exemplo, buscando um homem que não estivesse nem ao nível da multidão nem ao dos poucos escolhidos — uma distinção tão antiga quanto Pitágoras, que não aspirava a governar cidades nem afirmava saber como melhorar e cuidar das almas dos cidadãos; que não acreditava que os homens pudessem ser sábios e não os invejava pelos dons de sua sabedoria divina, caso a possuíssem, e que, portanto, nunca tentou formular uma doutrina que pudesse ser ensinada e aprendida. Resumidamente, proponho tomar como modelo um homem que pensou sem se tornar filósofo, um cidadão entre cidadãos, que nada fez e nada reivindicou, exceto o que, em sua opinião, todo cidadão tem o direito de ser e fazer. Você deve ter adivinhado que estou me referindo a Sócrates, e espero que ninguém questione seriamente que minha escolha é historicamente justificada.

Mas quero avisá-los que há muita controvérsia em torno do Sócrates histórico. Sobre como e em que medida ele pode ser distinguido de Platão, sobre que peso atribuir ao Sócrates de Xenofonte, e assim por diante. Apesar de este ser um dos pontos mais fascinantes no debate intelectual, vou deixá-lo de lado por aqui. Ainda assim, não se pode usar ou transformar uma figura histórica em modelo e atribuir-lhe uma função representativa definida sem oferecer alguma justificativa. Gilson, em seu grande livro “Dante e a Filosofia”, mostra como, em “A Divina Comédia”, “um personagem retém tanta realidade histórica quanto a exigida pela função representativa que Dante lhe atribui”. Tal liberdade no tratamento de dados factuais e históricos parece ser concedida apenas a poetas, e se os não poetas a permitirem, os acadêmicos os acusarão de arbitrariedade ou pior. No entanto, com ou sem justificativa, isso equivale precisamente ao costume amplamente aceito de construir “tipos ideais”; Pois a grande vantagem do tipo ideal reside precisamente no fato de não ser uma abstração personificada à qual se atribui algum significado alegórico, mas sim de ser escolhido dentre a massa de seres vivos, passados ​​ou presentes, por possuir um significado representativo na realidade, que, para se revelar plenamente, precisa apenas ser purificado. Gilson explica como essa purificação funciona em sua discussão sobre o papel que Dante atribuiu a Tomás de Aquino em A Divina Comédia. No Canto X do “Paraíso”, Tomás glorifica Siger de Brabante, que foi condenado por heresia e a quem “o Tomás de Aquino histórico jamais ousaria louvar da maneira como Dante o leva a louvar”, pois se recusaria “a levar a distinção entre filosofia e teologia tão longe a ponto de atingir […] o separatismo radical que Dante tinha em mente”. Para Dante, Tomás teria sido “privado do direito de simbolizar, em A Divina Comédia, a sabedoria dominicana da fé”, um direito que, sob qualquer outro ponto de vista, ele poderia reivindicar. Ele era, como Gilson magistralmente demonstra, aquela “parte de sua imagem que (até mesmo Tomás) teve que deixar nos portões do Paraíso antes de poder entrar”. Há muitas características do Sócrates de Xenofonte, cuja credibilidade histórica é inquestionável, que Sócrates teria que ter deixado nos portões do Paraíso se Dante quisesse usá-lo.

A primeira coisa que nos impressiona nos diálogos socráticos de Platão é que eles são aporéticos. O argumento não leva a lugar nenhum, ou então anda em círculos. Para saber o que é justiça, é preciso saber o que é conhecimento, e para saber isso, é preciso ter uma noção prévia e inquestionável de conhecimento (é o caso no Teeteto e no Cármides). Portanto, “não é possível a ninguém buscar nem o que sabe nem o que não sabe […]. Pois não poderiam buscar nem o que sabem, visto que já o sabem, e então não há necessidade de busca, nem o que não sabem, visto que, nesse caso, nem sequer sabem o que devem buscar” (Mênon, 80). Ou em Eutífron: para ser piedoso, preciso saber o que é piedade. Piedosas são as coisas que agradam aos deuses; mas são piedosas porque agradam aos deuses, ou agradam aos deuses porque são piedosas? Nenhum dos argumentos, logoi, sempre se sustenta; são circulares. Ao fazer perguntas para as quais não sabe as respostas, Sócrates as põe em movimento. E, uma vez que as afirmações se completam, geralmente é Sócrates quem corajosamente propõe recomeçar e buscar o que são justiça, piedade, conhecimento ou felicidade.

O fato é que esses primeiros diálogos tratam de conceitos cotidianos, muito simples, como aqueles que surgem sempre que se abre a boca ou se começa a falar. A introdução costuma ser assim: todos sabem que existem pessoas felizes, atos justos, homens corajosos, coisas belas para se ver e admirar; o problema começa com o uso que fazemos de substantivos, presumivelmente derivados dos adjetivos que aplicamos a casos particulares conforme nos aparecem (vemos um homem feliz, percebemos uma ação corajosa ou uma decisão justa), isto é, com palavras como felicidade, coragem, justiça etc., que hoje chamamos de conceitos e que Sólon chamou de “medida invisível” (aphanes metron), a coisa mais difícil de entender, mas que possui os limites de todas as coisas, e que Platão, um pouco mais tarde, chamou de ideias, perceptíveis apenas aos olhos do espírito. Essas palavras, usadas para agrupar qualidades e eventos visíveis e manifestos, mas relacionados a algo invisível, são inseparáveis ​​da nossa linguagem cotidiana, e ainda assim não podemos explicá-las; quando tentamos defini-las, elas se tornam elusivas; Quando falamos de seu significado, nada permanece fixo, tudo começa a se mover. Portanto, em vez de repetir o que aprendemos com Aristóteles — que Sócrates foi quem descobriu o “conceito” —, deveríamos nos perguntar o que Sócrates fez quando o descobriu. Pois essas palavras eram evidentemente parte da língua grega antes de ele tentar forçar os atenienses e a si mesmo a explicar o que queriam dizer quando as pronunciavam, na firme convicção de que nenhum discurso seria possível sem elas.

Essa convicção tornou-se discutível. Nosso conhecimento das chamadas línguas primitivas nos ensinou que agrupar muitos particulares sob um único nome não é nada natural, visto que essas línguas, cujo vocabulário é frequentemente muito mais rico que o nosso, carecem de tais nomes abstratos, mesmo que se refiram a objetos claramente visíveis. Para simplificar, tomemos um nome que já nos soe abstrato. Podemos usar a palavra “casa” para um grande número de objetos — para a cabana de barro de uma tribo, o palácio de um rei, a casa de um morador da cidade ou um apartamento na cidade — mas dificilmente podemos usá-la para as tendas de alguns nômades. A casa, em si mesma, auto kath’auto, que nos faz usar a palavra para todas essas construções particulares e muito diferentes, nunca é vista por nós, nem pelos olhos do corpo nem pelos da mente; toda casa imaginada, mesmo a mais abstrata, que tenha o mínimo necessário para torná-la reconhecível, já é uma casa particular. Esta outra casa, em si mesma, da qual precisamos ter uma noção para reconhecer construções particulares como casas, foi explicada de maneiras muito diversas e recebeu diferentes nomes ao longo da história da filosofia; não nos ocuparemos dela aqui, embora apresente menos problemas para definir do que palavras como felicidade ou justiça. A questão é que ela implica algo consideravelmente menos tangível do que a estrutura percebida por nossos olhos. Implica que ela “abriga alguém” e é “habitada” como nenhuma outra tenda, montada hoje e desmontada amanhã, pode abrigar ou servir de moradia. A palavra “casa”, a “medida invisível” de Sólon, “que possui os limites de todas as coisas” relacionada ao que é habitado, é uma palavra que não pode existir a menos que pressuponha uma reflexão sobre ser abrigado, habitar, ter um lar. Como palavra, “casa” é uma abreviação para todas essas coisas, uma espécie de abreviação sem a qual o pensamento e sua rapidez característica — “rápido como um pensamento”, como dizem — não seriam possíveis. A palavra “casa” é algo como um pensamento congelado que o pensamento deve descongelar, descongelar, por assim dizer, sempre que desejar descobrir seu significado original. Na filosofia medieval, esse tipo de pensamento era chamado de meditação, que deve ser entendida distintamente da contemplação, e até mesmo em oposição a ela. De qualquer forma, esse tipo de meditação reflexiva não produz definições e, nesse sentido, nenhum resultado. No entanto, é possível que aqueles que, por qualquer motivo, tenham refletido sobre o significado da palavra “casa” possam criar suas próprias definições um pouco melhores — embora isso não possa necessariamente ser considerado o caso, e certamente não sem uma clara consciência de uma relação de causa e efeito.Meditação não é o mesmo que deliberação, que, na verdade, supostamente resulta em resultados tangíveis; e a meditação não busca deliberação, embora às vezes, mas nem sempre, ela se transforme nela.

Diz-se geralmente que Sócrates acreditava na possibilidade de ensinar a virtude, e de fato ele parece ter sustentado que falar e pensar sobre piedade, justiça, coragem e assim por diante, permitia que os homens se tornassem mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo sem fornecer quaisquer definições ou valores para orientar sua conduta futura. O que Sócrates realmente acreditava sobre tais assuntos pode ser melhor ilustrado pelas comparações que aplicou a si mesmo. Ele se autodenominava moscardo e parteiro e, segundo Platão, alguém o apelidou de “torpedo”, um peixe que paralisa e entorpece ao contato; uma analogia cuja adequação Sócrates reconheceu sob a condição de que se entendesse que “o torpedo, estando ele próprio entorpecido, ao mesmo tempo entorpece os outros. Pois não é que, não tendo problemas, eu os gero nos outros, mas que, estando completamente imbuído de problemas, também os faço assim nos outros”, o que resume perfeitamente a única maneira pela qual o pensamento pode ser ensinado. além do fato de que Sócrates, como ele repetidamente disse, não ensinava nada pela simples razão de que não tinha nada a ensinar: ele era “estéril” como as parteiras gregas que já haviam passado da idade da fertilidade. (Como ele não tinha nada a ensinar, e nenhuma verdade a oferecer, ele foi acusado de nunca revelar sua opinião pessoal [gnomee], como sabemos por Xenofonte, que o defendeu contra essa acusação.) 1” Parece que, diferentemente dos pensadores profissionais, ele sentiu um impulso para investigar se seus pares compartilhavam suas perplexidades, um impulso bem distinto da inclinação para desvendar enigmas a fim de demonstrá-los aos outros.

Vamos considerar brevemente essas três comparações.

Primeiro, Sócrates é um provocador: ele sabe como incitar cidadãos que, sem ele, “continuariam a dormir pelo resto de suas vidas”, a menos que alguém viesse acordá-los novamente. E para que ele os incitava? Para pensar, para fazê-los examinar seus assuntos, uma atividade sem a qual a vida, em sua opinião, não só teria pouco valor, como nem sequer seria vida real. Segundo, Sócrates é um parteiro. E aqui surge uma tripla implicação: a “esterilidade” de que já falei; sua perícia em libertar os outros de seus pensamentos, isto é, das implicações de suas opiniões; e a função própria da parteira grega de decidir se a criança estava mais ou menos adaptada à vida ou, para usar a linguagem socrática, era um mero “ovo estéril” do qual a mãe precisava ser libertada. Nesse contexto, apenas as duas últimas implicações são de interesse. Pois, de acordo com os diálogos socráticos, não há ninguém entre os interlocutores de Sócrates que tenha expressado um pensamento que não fosse um “embrião estéril”. Sócrates faz aqui o que Platão, pensando nele, disse dos sofistas: as pessoas devem ser purgadas de suas “opiniões”, isto é, daqueles preconceitos não examinados que as impedem de pensar, sugerindo que sabemos, onde não apenas não sabemos, mas também não podemos saber, e ao fornecer-lhes a verdade, nós as ajudamos a se libertar do que é ruim — suas opiniões — sem torná-las boas.

Terceiro, Sócrates, sabendo que não sabemos, mas não querendo permanecer ali, permanece firme em suas perplexidades e, como o torpedo, paralisa todos que toca. O torpedo, à primeira vista, parece o oposto do moscardo; ele paralisa onde quer que o moscardo pica. Mas o que de fora, do curso ordinário dos assuntos humanos, só pode ser visto como paralisia, é percebido como o estágio mais elevado do ser vivo. Apesar da escassez de evidências documentais da experiência do pensamento, ao longo dos séculos houve um certo número de declarações de pensadores que confirmam isso. O próprio Sócrates, ciente de que o pensamento tem a ver com o invisível e de que ele próprio é invisível, e de que lhe faltam as manifestações externas de outras atividades, parece ter usado a metáfora do vento para se referir a ele: “Os próprios ventos não são vistos, embora os efeitos que produzem sejam manifestos para nós e os sintamos quando nos alcançam” (a mesma metáfora é às vezes usada por Heidegger, que também fala da “tempestade do pensamento”).

No contexto em que Xenofonte, sempre ávido por defender o mestre contra acusações e argumentos vulgares, se refere a essa metáfora, ela não faz muito sentido. No entanto, ele próprio indica que as manifestações do vento invisível do pensamento são aqueles conceitos, virtudes e “valores” que Sócrates examinou criticamente. O problema — e a razão pela qual o mesmo homem pode ser compreendido e se compreender tanto como uma mutuca quanto como um peixe-torpedo — é que esse mesmo vento, quando se ergue, tem a peculiaridade de carregar consigo suas próprias manifestações anteriores. É de sua própria natureza desfazer, descongelar, por assim dizer, o que a linguagem, o meio do pensamento, congelou no pensamento: palavras (conceitos, frases, definições, doutrinas), cuja “fraqueza” e inflexibilidade Platão denuncia tão esplendidamente na Sétima Carta. A consequência dessa peculiaridade é que o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo; Ela mina todos os critérios estabelecidos, todos os valores e padrões do bem e do mal, em suma, todos os hábitos e regras de conduta que são objeto da moral e da ética. Esses pensamentos congelados, Sócrates parece estar dizendo, são tão confortáveis ​​que podemos usá-los enquanto dormimos; mas se o vento do pensamento, que agora soprarei sobre você, o despertar do sono e o deixar plenamente desperto e vivo, então você perceberá que nada resta em suas mãos além de perplexidades, e que o máximo que você pode fazer é compartilhá-las uns com os outros.

Portanto, a paralisia provocada pelo pensamento é dupla: é característica do “pare e pense”, a interrupção de todas as outras atividades, e pode ter um efeito paralisante quando emergimos dela tendo perdido a certeza do que parecia incontestável enquanto estávamos irrefletidamente ocupados em fazer algo. Se nossa ação consistisse em aplicar regras gerais de conduta a casos particulares, como os que surgem na vida cotidiana, então agora nos encontramos paralisados ​​porque nenhuma dessas regras resiste ao vento do pensamento. Para usar mais uma vez o exemplo do pensamento congelado inerente à palavra “casa”, uma vez que se reflita sobre seu sentido implícito — morar, ter um lar, ser abrigado —, não se está mais disposto a aceitar como seu próprio lar o que quer que a moda do momento prescreva; mas isso de forma alguma garante que seremos capazes de encontrar uma solução aceitável para nossos próprios problemas de moradia. Podemos ficar paralisados.

Isso nos leva ao último e talvez maior risco dessa empreitada perigosa e infrutífera. No círculo de Sócrates, havia homens como Alcibíades ou Crítias — e Deus sabe que eles estavam longe de ser os piores dos chamados alunos — que se revelaram uma ameaça real à pólis, não tanto por terem sido paralisados ​​pelo peixe-torpedo, mas, ao contrário, por terem sido picados pela mosca. Despertaram para o cinismo e para uma vida licenciosa. Insatisfeitos por terem sido ensinados a pensar sem terem aprendido uma doutrina, transformaram a falta de resultados do pensamento reflexivo socrático em resultados negativos: se não podemos definir o que é piedade, sejamos ímpios, o que é claramente o oposto do que Sócrates esperava alcançar ao falar sobre piedade.

A busca por significado, que incansavelmente dissolve e reexamina todas as teorias e regras aceitas, pode a qualquer momento voltar-se contra si mesma, por assim dizer, e produzir uma reversão dos antigos valores e declará-los “novos valores”. Isso, em certa medida, é o que Nietzsche fez quando inverteu o platonismo, esquecendo que um Platão invertido ainda é Platão, ou o que Marx fez quando inverteu Hegel, produzindo no processo um sistema estritamente hegeliano de história. Tais resultados negativos do pensamento serão posteriormente usados ​​durante o sono, com a mesma rotina irrefletida dos antigos valores; no momento em que são aplicados ao domínio dos assuntos humanos, é como se nunca tivessem passado pelo processo de pensar. O que comumente chamamos de niilismo – somos tentados a datá-lo historicamente, a desprezá-lo politicamente e atribuí-lo a pensadores suspeitos de terem se envolvido em “pensamentos perigosos” – é, na realidade, um perigo inerente à própria atividade de pensar. Não existem pensamentos perigosos; o próprio pensar é perigoso; mas o niilismo não é seu resultado. O niilismo é apenas o reverso do convencionalismo; seu credo consiste na negação dos chamados valores positivos atuais, aos quais permanece vinculado. Todo exame crítico deve, pelo menos hipoteticamente, passar por uma etapa que nega “valores” e opiniões aceitas, buscando suas implicações e suposições tácitas, e, nesse sentido, o niilismo pode ser visto como o perigo sempre presente do pensamento. Mas esse risco não surge da convicção socrática de que uma vida não examinada é inútil, mas, ao contrário, do desejo de encontrar resultados que tornem desnecessária a reflexão posterior. Pensar é igualmente perigoso para todas as crenças e, por si só, não inicia nenhuma nova.

No entanto, não pensar, que parece um estado tão recomendável para os assuntos políticos e morais, também tem seus perigos. Ao afastar as pessoas dos perigos do exame crítico, elas são ensinadas a aderir imediatamente a quaisquer regras de conduta em vigor em uma determinada sociedade em um determinado momento. Elas então se acostumam menos ao conteúdo das regras – um exame atento delas sempre as levaria à perplexidade – do que à posse de regras sob as quais subordinar particularidades. Em outras palavras, elas se acostumam a nunca tomar decisões. Alguém que desejasse, por qualquer razão ou propósito, abolir os antigos “valores” ou virtudes não encontraria dificuldade, desde que oferecesse um novo código, e não precisaria de força nem de persuasão – nem de qualquer prova da superioridade dos novos valores sobre os antigos – para impô-los. Quanto mais firmemente as pessoas se apegam ao antigo código, mais ansiosas estarão para assimilar o novo; a facilidade com que, em certas circunstâncias, tais inversões podem ocorrer sugere, na verdade, que, quando elas ocorrem, todos estão dormindo. Nosso século nos deu alguma experiência nessas questões: quão fácil era para governantes totalitários inverter as normas morais básicas da moralidade ocidental — “Não matarás” no caso da Alemanha de Hitler, “Não dirás falso testemunho contra teu próximo” no caso da Rússia stalinista.

Voltemos a Sócrates. Os atenienses lhe diziam que o pensamento era subversivo, que o vento do pensamento era um furacão que varre todos os sinais estabelecidos pelos quais os homens se orientam no mundo; traz desordem às cidades e confunde os cidadãos, especialmente os jovens. E embora Sócrates negue que o pensamento corrompa, ele não afirma que ele melhore alguém, e, apesar de sua declaração de que “nenhum bem maior surgiu para você na cidade do que o meu serviço”, ele não afirma ter começado sua carreira como filósofo para se tornar um grande benfeitor. Se “uma vida não examinada é inútil para ser vivida”, o pensamento acompanha a vida quando lida com conceitos como justiça, felicidade, temperança, prazer, com palavras que designam coisas invisíveis e que a linguagem nos ofereceu para expressar o significado de tudo o que ocorre na vida e que nos acontece enquanto estamos vivos.

Sócrates chama essa busca por significado de eros, um tipo de amor que é acima de tudo uma necessidade — ele deseja o que não tem — e esse é o único assunto no qual ele afirma ser especialista. Os homens amam a sabedoria e filosofam (philosophein) porque não são sábios, assim como amam a beleza e “fazem coisas belas”, por assim dizer (philokalein, como Péricles a chamava), porque não são belos. O amor, ao desejar o que não tem, estabelece uma relação com ela. Para externalizar essa relação, para fazê-la aparecer, os homens falam sobre ela da mesma forma que um amante quer falar sobre sua amada. Como a busca é uma espécie de amor e desejo, os objetos do pensamento só podem ser coisas dignas de amor: beleza, sabedoria, justiça e assim por diante. A feiura e o mal são excluídos por definição do empreendimento do pensamento, embora possam às vezes aparecer como deficiências, como falta de beleza, injustiça e o mal (kakia) como ausência do bem. Isso significa que não têm raízes próprias, nenhuma essência que o pensamento possa apreender. O mal não pode ser feito voluntariamente devido ao seu “status ontológico”, como diríamos atualmente; consiste em uma ausência, em algo que é Não. Se o pensamento dissolve conceitos normais e positivos em seu sentido original, então também dissolve esses conceitos negativos em sua falta de sentido original, no nada. Esta não é de forma alguma a opinião exclusiva de Sócrates; que o mal é uma mera privação, negação ou exceção à regra é quase a opinião unânime de todos os pensadores. (O erro e o perigo mais evidentes da proposição, tão antiga quanto Platão, “Ninguém faz o mal voluntariamente” é a conclusão que ela implica: “Todos querem fazer o bem”. A triste verdade é que, na maioria das vezes, o mal é praticado por pessoas que nunca consideraram ser boas ou más.)

Aonde tudo isso nos leva em relação ao nosso problema: a incapacidade ou recusa de pensar e a capacidade de praticar o mal? Concluímos que somente pessoas inspiradas por esse eros, esse amor desejoso de sabedoria, beleza e justiça, são capazes de pensar — ​​ou seja, resta-nos a “natureza nobre” de Platão como requisito para o pensamento. E era precisamente isso que não buscávamos quando colocamos a questão de saber se a atividade de pensar, sua própria expressão — distinta e não relativa às qualidades que a natureza e a alma humanas podem possuir — condiciona o homem de tal forma que ele é incapaz de praticar o mal.

III

Entre as poucas declarações de Sócrates, esse amante das perplexidades, há duas, intimamente relacionadas, que se relacionam com a nossa questão. Ambas aparecem no Górgias, o diálogo sobre a retórica, a arte de se dirigir e persuadir a multidão. O Górgias não pertence aos primeiros diálogos socráticos; foi escrito logo após Platão se tornar chefe da Academia. Além disso, parece que seu próprio tema diz respeito a uma forma de discurso que perderia todo o sentido se fosse aporética. E, no entanto, esse diálogo permanece aporético; apenas os diálogos posteriores de Platão, dos quais Sócrates desapareceu ou não é mais o foco da discussão, perderam completamente essa qualidade. O Górgias, como a República, conclui com um dos mitos de Platão sobre uma vida após a morte de recompensas e punições que aparentemente — e isso é irônico — resolve todas as dificuldades. A seriedade desses mitos é puramente política; consiste em serem dirigidos à multidão. Esses mitos, certamente não socráticos, são importantes porque contêm, embora de forma não filosófica, o reconhecimento de Platão de que os homens podem fazer e cometer o mal voluntariamente e, ainda mais importante, a admissão implícita de que ele, como Sócrates, não sabia o que fazer filosoficamente com esse fato perturbador. Podemos não saber se Sócrates acreditava que a ignorância causa o mal e que a virtude pode ser ensinada; mas sabemos que Platão considerou mais sensato confiar em ameaças.

As duas declarações socráticas são as seguintes. A primeira: “Cometer injustiça é pior do que recebê-la”; ao que Cálicles, o interlocutor do diálogo, responde que toda a Grécia teria respondido: “Mesmo esta desgraça, sofrer injustiça, não é próprio de um homem, mas de algum escravo por quem é preferível morrer a continuar vivendo, e que, mesmo que receba dano e seja insultado, não é capaz de se defender ou de defender outro por quem se importa” (474). A segunda: “É melhor que minha lira esteja desafinada e desafinada comigo, e da mesma forma o coro que eu rego, e que muitos homens discordem de mim e me contradigam, do que eu, que sou apenas um, discordar de mim mesmo e me contradizer”. O que leva Cálicles a dizer a Sócrates que “nas conversas você se comporta com veemência, como um verdadeiro orador popular”, e que seria melhor para si mesmo e para os outros se ele parasse de filosofar (482).

E, como veremos, elas estão bem aqui. Foi a própria filosofia, ou melhor, a experiência do pensamento, que levou Sócrates a fazer essas afirmações — embora, naturalmente, ele não tenha empreendido seu propósito para chegar a elas. Seria, penso eu, um erro grave entendê-las como o resultado de alguma meditação sobre moralidade; são, sem dúvida, intuições, mas intuições devidas à experiência e, na medida em que o próprio processo de pensamento estava envolvido, são, no máximo, subprodutos ocasionais.

Temos dificuldade em compreender quão paradoxal a primeira afirmação deve ter soado na época em que foi feita; após milhares de anos de uso e abuso, soa como moralismo inútil. E a melhor demonstração de quão difícil é para as mentes modernas compreender a força da segunda é o fato de que suas palavras-chave, “sendo apenas um, seria pior para mim discordar de mim mesmo do que muitos homens discordarem de mim e me contradizerem”, são frequentemente omitidas das traduções. A primeira é uma afirmação subjetiva, significando que é melhor para mim sofrer o mal do que fazê-lo, e é contrariada pela afirmação oposta, igualmente subjetiva, que, claro, soa muito mais plausível. Se considerássemos essas afirmações do ponto de vista do mundo, distinto daquele dos dois interlocutores, teríamos que dizer: o que conta é que uma injustiça foi cometida; é irrelevante quem é melhor, quem comete a injustiça ou quem a sofre. Como cidadãos, devemos impedir que a injustiça seja cometida, porque ela existe no mundo que todos compartilhamos — o perpetrador, o sofredor e o espectador: a Cidade sofreu injustiça. (É por isso que nossos códigos legais distinguem entre crimes, nos quais o devido processo legal é obrigatório, e transgressões, nas quais apenas indivíduos específicos, que podem ou não desejar ir a julgamento, são prejudicados. No caso de um crime, os estados mentais subjetivos dos envolvidos são irrelevantes — a pessoa que sofreu o crime pode estar disposta a perdoar, e o perpetrador pode estar completamente arrependido — porque é a comunidade como um todo que foi atacada.)

Em outras palavras, Sócrates não está falando aqui como um cidadão, que supostamente se importa mais com o mundo do que consigo mesmo. É como se dissesse a Cálicles: se você fosse como eu, um amante da sabedoria e carente de reflexão, e se o mundo fosse como você o pinta — dividido em forte e fraco, onde “os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem” (Tucídides) — de modo que não houvesse alternativa a não ser fazer ou sofrer injustiça, então você concordaria comigo que é melhor sofrer do que fazê-la. O pressuposto é: se você pensasse, se concordasse que “uma vida não examinada é inútil”. Até onde eu sei, há apenas uma outra passagem na literatura grega que, quase com as mesmas palavras, diz o que Sócrates disse: “Aquele que comete injustiça é mais infeliz (kakodaimonesteros) do que aquele que a sofre.” Isso se encontra em um dos fragmentos de Demócrito (B 45), o grande adversário de Parmênides, que, provavelmente por essa razão, nunca foi mencionado por Platão. A coincidência é digna de nota, pois Demócrito, ao contrário de Sócrates, não se interessava particularmente pelos assuntos humanos, mas parece ter se interessado profundamente pela experiência do pensamento. “O pensamento (logos)”, disse ele, “facilmente se abstém porque está acostumado a alcançar contentamento fora de si” (B 146). Pode parecer que o que fomos tentados a entender como uma proposição puramente moral, na verdade, surge da experiência do pensamento como tal.

E isso nos leva à segunda afirmação, que é o requisito da primeira. Esta também é altamente paradoxal. Sócrates fala de ser um e, portanto, de ser incapaz de correr o risco de não estar em harmonia consigo mesmo. Mas nada que seja idêntico a si mesmo, real e absolutamente um, como A é A, pode estar ou deixar de estar em harmonia consigo mesmo; pelo menos dois tons são sempre necessários para produzir um som harmonioso. Certamente, quando apareço e sou visto pelos outros, sou um; caso contrário, não seria reconhecido. E enquanto estou com os outros, quase sem consciência de mim mesmo, sou exatamente como pareço aos outros. Chamamos de consciência (literalmente, “conhecer a si mesmo”) o fato curioso de que, em certo sentido, também sou para mim mesmo, embora dificilmente me assemelhe a mim mesmo, o que indica que o “eu sou apenas um” socrático é mais problemático do que parece; não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo, e, neste último caso, claramente não sou apenas um. Na minha singularidade reside uma diferença.

Conhecemos essa diferença de outros ângulos. Tudo o que existe entre uma pluralidade de coisas não é simplesmente o que é, em sua identidade, mas também é diferente de outras coisas; essa diferença é própria de sua natureza. Quando tentamos apreendê-lo com o pensamento, querendo defini-lo, devemos levar em conta essa alteridade (alteritas) ou diferença. Quando dizemos o que uma coisa é, também dizemos o que ela não é; toda determinação é uma negação, como afirma Spinoza. Referida apenas a si mesma, ela é idêntica (auto [por exemplo, hekaston] heautó tauton: “cada uma igual a si mesma”). E tudo o que podemos dizer sobre ela em sua identidade clara é: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Mas este não é exatamente o caso se eu, em minha identidade (“Eu sou apenas um”), me refiro a mim mesmo; sou inevitavelmente dois em um, e é por isso que a tão alardeada busca por identidade é em vão e nossa atual crise de identidade só poderia ser resolvida com a perda da consciência. A consciência humana sugere que a diferença e a alteridade, que são características importantes do mundo das aparências, tal como é dado ao homem como seu habitat entre uma pluralidade de coisas, são também as condições autênticas para a existência do ego humano. Pois este ego, o eu sou eu, experimenta a diferença na identidade precisamente quando se relaciona não com as coisas que aparecem, mas apenas consigo mesmo. Sem essa cisão original, que Platão posteriormente utilizou em sua definição do pensamento como o diálogo silencioso (eme emauto) entre eu e mim mesmo, o dois-em-um, que Sócrates pressupõe em sua afirmação sobre a harmonia consigo mesmo, não seria possível. Consciência não é o mesmo que pensar; mas sem ela, pensar seria impossível. O que o pensamento atualiza em seu processo é a diferença que existe na consciência.

Para Sócrates, esse dois em um significava simplesmente que, se alguém quisesse pensar, deveria garantir que ambos os participantes do diálogo estivessem em boa forma, que fossem amigos. É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la, porque ainda se pode ser amigo da vítima; quem gostaria de ser amigo de um assassino e ter que conviver com ele? Nem mesmo um assassino. Que tipo de diálogo se poderia manter com ele? Precisamente o diálogo que Shakespeare fez Ricardo III manter consigo mesmo, após ter cometido um grande número de crimes:

O que eu temo? De mim mesmo? Não há mais ninguém aqui:
Richard quer Richard; isto é, eu sou eu.
Há um assassino aqui? Não. Sim, sou eu.
Então fuja. O quê, de mim mesmo? Grande razão, por quê?
Para que eu não possa me vingar em mim mesmo.
Ah, eu me amo. Por quê?
Por algum bem que fiz a mim mesmo?
Ah, não! Ah, antes, eu me odeio por atos odiosos cometidos por mim mesmo!
Eu sou um rufião. Mas minto, eu não sou.
Louco, fale bem de si mesmo. Louco, não bajule.*

Um encontro semelhante, mas comparativamente pouco dramático, manso e quase inofensivo, do eu consigo mesmo pode ser encontrado em um dos duvidosos diálogos socráticos, o Hípias Maior (que, embora não tenha sido escrito por Platão, pode também ser um testemunho autêntico de Sócrates). Ao final do diálogo, Sócrates diz a Hípias, que se mostrara um interlocutor particularmente abstruso: “Você é abençoado”, comparando-o a si mesmo, que é aguardado em seu retorno para casa por um homem muito desagradável “que continuamente me refuta, é muito próximo dos meus parentes e mora em minha casa” e que, mal tendo ouvido as opiniões de Hípias de Sócrates, lhe pergunta: “Se não tenho vergonha de falar sobre belas buscas e de ser abertamente refutado sobre o belo, porque nem mesmo sei o que o belo realmente é” (304). Em outras palavras, quando Hípias retorna para casa, ele ainda é um, e, embora não perca a consciência, não fará nada para atualizar a diferença dentro de si. Com Sócrates, ou, neste caso, com Ricardo III, as coisas são diferentes. Eles se relacionam não apenas com os outros, mas também consigo mesmos. A questão aqui é que o que se chama de “o outro homem” e “a outra consciência” só está presente quando estão sozinhos. Quando a meia-noite passa e Ricardo se junta novamente à companhia de seus amigos, então: “Consciência nada mais é do que uma palavra usada por covardes, inicialmente inventada para assustar os fortes…”

E, finalmente, Sócrates, tão atraído pela praça do mercado, deve voltar para casa, onde estará sozinho, em solidão, para encontrar sua outra companheira. Escolhi a passagem de Ricardo III porque Shakespeare, embora use a palavra “consciência”, não a usa aqui da maneira usual. A língua inglesa levou muito tempo para distinguir a palavra “consciência” de “consciência”, e em algumas línguas, como o francês, essa separação nunca ocorreu. A consciência, como a entendemos em questões morais e jurídicas, supostamente está sempre presente conosco, assim como a consciência. E essa consciência também deve nos dizer o que fazer e do que precisamos nos arrepender; ela era a voz de Deus antes de se tornar lumen naturale ou razão prática kantiana. Ao contrário dessa consciência, o homem de quem Sócrates fala permanece em casa; ele a teme, assim como os assassinos em Ricardo III temem sua consciência: como algo ausente. A consciência surge como uma reflexão tardia, motivada por um crime, como no caso do próprio Ricardo, ou por opiniões irrefletidas, como no caso de Sócrates, ou pelos medos antecipados de tais reflexões tardias, como no caso dos assassinos contratados em Ricardo III. Ao contrário da voz de Deus dentro de nós ou da luz natural, essa consciência não nos dá prescrições positivas — mesmo o demônio socrático, sua voz divina, apenas lhe diz o que não fazer; nas palavras de Shakespeare, “ela bloqueia o homem em todos os lugares com obstáculos”. O que o homem teme dessa consciência é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele retornar para casa. O assassino de Shakespeare diz: “Todo homem que tenta viver à vontade […] tenta viver sem ela”, e isso é facilmente alcançado porque tudo o que se precisa fazer é nunca iniciar esse diálogo silencioso e solitário que chamamos de pensamento, nunca retornar para casa e submeter as coisas a um exame. Não se trata de uma questão de mal ou bondade, assim como não se trata de inteligência ou estupidez. Alguém que não tem consciência da relação entre mim e mim mesmo (na qual examino o que digo e o que faço) não se preocupará em se contradizer, e isso significa que nunca poderá prestar contas do que diz ou faz, ou não desejará; nem se preocupará em se contradizer, e isso significa que nunca poderá prestar contas do que diz ou faz, ou não desejará; nem se preocupará em cometer qualquer crime, pois pode ter certeza de que será esquecido no momento seguinte.

Pensar, em seu sentido não cognitivo e não especializado, concebido como uma necessidade natural da vida humana, como a atualização da diferença dada na consciência, não é prerrogativa de poucos, mas uma faculdade sempre presente em todos os homens; da mesma forma, a incapacidade de pensar não é “prerrogativa” daqueles que não possuem capacidade cerebral, mas uma possibilidade sempre presente para todos — incluindo cientistas, pesquisadores e outros especialistas em atividades mentais — de evitar aquela relação consigo mesmo, cuja possibilidade e importância Sócrates foi o primeiro a descobrir. Aqui, não estávamos lidando com o mal, que a religião e a literatura tentaram levar à justiça, mas com o mal; não com o pecado e os grandes vilões, que se tornaram heróis negativos na literatura e que geralmente agiam por inveja ou ressentimento, mas com a pessoa normal, não má, que não tem motivos especiais e que, por essa razão, é capaz de um mal infinito; ao contrário do vilão, ele nunca encontra sua catástrofe da meia-noite.

Para o eu pensante e sua experiência, a consciência de que “em toda parte obstrui o homem com obstáculos” é um efeito colateral. E permanece uma questão marginal para a sociedade em geral, exceto em casos de emergência. Pois o pensamento, como tal, pouco beneficia a sociedade, muito menos do que a sede de conhecimento na qual é usado como instrumento para outros propósitos. Não cria valores, não descobrirá, de uma vez por todas, o que é “bom”, e não confirma, mas sim dissolve, regras de conduta estabelecidas. Seu significado político e moral surge apenas naqueles raros momentos da história em que “as coisas desmoronam: o centro não consegue se manter; / a pura anarquia se espalha sobre o mundo”, quando “os melhores não têm convicção, enquanto os piores / estão cheios de intensidade apaixonada”.*

Nesses momentos, o pensamento deixa de ser marginal em questões políticas. Quando todos são irrefletidamente levados pelo que os outros fazem ou acreditam, aqueles que pensam são arrancados de seu esconderijo porque sua recusa em participar atrai a atenção e, portanto, se torna uma espécie de ação. O elemento purgativo contido no pensamento, a maiêutica socrática, que traz à tona as implicações de opiniões não examinadas e, assim, as destrói — valores, doutrinas, teorias e até convicções — é implicitamente político. Pois essa destruição tem um efeito libertador sobre outra faculdade humana, a faculdade de julgamento, que pode ser chamada, com alguma justificação, a mais política das capacidades mentais humanas. É a faculdade de julgar particulares sem subjugá-los a regras gerais que são ensinadas e aprendidas até que se tornem hábitos que podem ser substituídos por outros hábitos e regras.

A faculdade de julgar os particulares (descoberta por Kant), a capacidade de dizer “isto está errado”, “isto é belo”, etc., não coincide com a faculdade de pensar. Pensar opera com o invisível, com representações de coisas ausentes; julgar sempre lida com particulares e coisas que estão à mão. Mas os dois estão inter-relacionados de forma semelhante à forma como a consciência moral e a consciência de mundo estão interconectadas. Se pensar, o dois em um do diálogo silencioso, atualiza a diferença dentro de nossa identidade, dada na consciência, e assim produz a consciência como seu subproduto, então julgar, o subproduto do efeito libertador do pensamento, realiza o pensamento, o torna manifesto no mundo das aparências, onde nunca estou sozinho e sempre ocupado demais para pensar. A manifestação do vento do pensamento não é conhecimento; é a capacidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio. E isso, nos raros momentos em que um ponto crítico é atingido, pode prevenir catástrofes, pelo menos para mim.

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