Justiça, Moral e Direito em H.L.A. Hart: Leitura dos Capítulos 8 e 9 de O Conceito de Direito
Avaliação 2 – Ética e Direito 2025/1 – Ubirajara T Schier
- A justiça como estrutura racional normativa
No capítulo 8 de O Conceito de Direito, H.L.A. Hart analisa o conceito de justiça, destacando sua ambiguidade histórica e sua força normativa nas sociedades. Para ele, justiça é uma noção moral específica, dotada de estrutura própria, baseada na exigência de tratar casos semelhantes de maneira semelhante. Esse princípio formal serve de base para dois tipos fundamentais: justiça distributiva, que regula como bens, encargos e benefícios são distribuídos numa sociedade segundo critérios como mérito, necessidade ou igualdade; e justiça corretiva, que busca restaurar o equilíbrio quando esse foi rompido, como em casos de danos, violações de direitos ou crimes. Essas formas de justiça revelam o caráter comparativo e racional da noção, que exige, para sua aplicação, o reconhecimento de semelhanças relevantes entre os sujeitos. Tal estrutura distingue a justiça de outras dimensões da moralidade, como o altruísmo ou a compaixão, que se orientam por uma lógica não comparativa e não necessariamente exigem tratamento igual. Ao isolar essa estrutura lógica, Hart contribui para a delimitação teórica da justiça dentro da pluralidade de valores morais existentes.
- Moralidade, direito e convenções sociais
Ainda no capítulo 8, Hart avança na distinção entre diferentes tipos de normas presentes na vida social. Ele identifica três formas centrais de normatividade: a moralidade interna, composta por convicções pessoais profundas, que orientam o comportamento por consciência individual; a moralidade externa, que consiste em valores coletivos partilhados e socialmente transmitidos, como o respeito à vida, à honestidade ou à igualdade; e os costumes ou convenções sociais, que abrangem práticas como etiqueta, tradições culturais ou normas de convivência que não necessariamente possuem carga moral. A obrigação jurídica, por sua vez, se diferencia das demais por estar vinculada à autoridade institucional, ser passível de sanção organizada e exigir uma postura de reconhecimento coletivo. Já a obrigação moral não depende de uma autoridade formal e é normalmente sustentada por adesão íntima ou pressão social. Os costumes, embora possam se confundir com a moral ou o direito em alguns contextos, possuem menor resistência à mudança e não carregam, necessariamente, um juízo ético. Ao diferenciar essas formas de norma, Hart oferece um mapa conceitual útil para compreender onde e como se situa a justiça no interior da vida normativa das sociedades.
- Direito e moral: separação conceitual e crítica ao jusnaturalismo
No capítulo 9, Hart enfrenta diretamente o debate sobre a relação entre direito e moral. Rompendo com o jusnaturalismo clássico, ele sustenta que a validade jurídica de uma norma não depende de sua conformidade com valores morais. Uma lei pode ser válida dentro de um sistema jurídico mesmo que seja considerada injusta do ponto de vista ético, desde que tenha sido criada conforme os critérios de validade definidos pela regra de reconhecimento do sistema. Hart rejeita a visão que identifica o direito com a moral — visão que, segundo ele, ignora os aspectos institucionais, formais e práticos que tornam o direito um tipo específico de sistema normativo. Sua crítica ao jusnaturalismo não visa desprezar a moral, mas preservar a autonomia conceitual do direito. Essa separação é essencial, por exemplo, para reconhecer juridicamente sistemas imperfeitos, mas operantes, bem como para permitir a crítica moral do direito sem colapsar sua estrutura técnica.
- O conteúdo mínimo do direito natural
Embora rejeite a ideia de que o direito derive da moral, Hart reconhece que há um “conteúdo mínimo de direito natural”, composto por condições universais da existência humana. Esses “truísmos” não têm valor moral em si, mas indicam porque o direito se torna uma necessidade prática para qualquer forma de convivência social estável: 1) A vulnerabilidade física dos seres humanos exige normas que impeçam a violência e protejam a integridade, como o direito penal; 2) A igualdade aproximada impede que uns possam controlar totalmente os outros, tornando necessário um sistema de regras que regule o uso da força e resolva disputas; 3) O altruísmo limitado obriga a criação de normas que organizem os interesses individuais em conflito, como nas regras sobre propriedade e contratos; 4) A escassez de recursos impõe limites naturais à apropriação, exigindo normas distributivas que organizem o acesso aos bens; 5) Por fim, as limitações cognitivas e volitivas dos seres humanos exigem um sistema previsível de sanções e procedimentos, como o devido processo legal, para garantir segurança jurídica. Esses elementos demonstram que, mesmo sem referência moral, o direito é funcionalmente indispensável à organização da vida social.
- As seis conexões entre direito e moral
Embora defenda a separação conceitual entre direito e moral, Hart identifica diversas formas de interação entre eles. Em primeiro lugar, a autoridade jurídica é frequentemente legitimada por valores morais compartilhados, o que contribui para a aceitação social das normas. Em segundo, valores morais influenciam a criação e interpretação das normas jurídicas, seja como base de inspiração legislativa ou como critério na aplicação judicial. Terceiro, a moral orienta a interpretação de normas ambíguas, especialmente em contextos constitucionais, onde princípios éticos funcionam como guia para decisões difíceis. Quarto, Hart afirma que normas válidas podem ser criticadas moralmente, o que é essencial para o processo de reforma jurídica e a melhoria do sistema. Quinto, alguns princípios morais — como igualdade e imparcialidade — são internalizados pela própria estrutura do direito, conferindo-lhe maior legitimidade. E, por fim, ele reconhece que, em situações extremas, como em regimes totalitários, a desobediência civil pode ser moralmente justificada, mesmo contra normas formalmente válidas. Essas conexões mostram que, embora o direito não derive da moral, ele não pode ser compreendido em completo isolamento dela.
Comentário crítico
A análise de Hart nos capítulos 8 e 9 de O Conceito de Direito oferece uma contribuição decisiva para o entendimento das relações entre justiça, moral e direito. Ao distinguir com precisão essas três esferas, o autor constrói um modelo de positivismo jurídico moderado, que reconhece a validade técnica das normas jurídicas independentemente de seu conteúdo ético, sem ignorar que a moralidade exerce papel decisivo na aceitação, crítica e desenvolvimento do direito. Sua proposta preserva a integridade institucional do direito ao mesmo tempo em que o torna sensível às exigências morais que emergem da vida social. Essa separação entre validade e justiça garante estabilidade e previsibilidade jurídica, fundamentais para sistemas funcionais. Contudo, em contextos de opressão legalizada, como regimes autoritários ou práticas discriminatórias formalmente válidas, essa separação pode revelar seus limites: a crítica moral não pode ser apenas externa, mas deve atuar como princípio de revisão e reconstrução do próprio sistema jurídico. Ainda assim, Hart oferece uma base teórica robusta, indispensável para compreender o papel do direito na organização social e no enfrentamento das tensões entre legalidade e legitimidade.
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