Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen: capítulos I e II

Introdução

Este resumo apresenta os principais argumentos dos capítulos I e II da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, visando compreender como o autor fundamenta a autonomia da ciência jurídica. O tema central é a separação do Direito em relação à natureza e à moral, como forma de garantir um estudo técnico e objetivo da normatividade jurídica. O problema consiste em saber se é possível analisar o Direito sem recorrer a explicações morais, políticas ou sociológicas.

Essa proposta segue relevante, pois ainda há teorias que confundem Direito com moralidade ou ideologia. Revisitar Kelsen permite repensar os limites da teoria jurídica e sua especificidade como campo filosófico. A metodologia utilizada é a análise conceitual dos argumentos apresentados pelo autor. O resumo se divide em duas partes: a primeira trata da separação entre Direito e natureza; a segunda, da separação entre Direito e moral. A conclusão retoma a relevância dessas distinções para a filosofia do Direito.


  1. Direito e Natureza: duas ordens diferentes

Para Kelsen, uma das tarefas fundamentais da ciência do Direito é distinguir com precisão o que é jurídico daquilo que pertence a outros tipos de fenômenos. Sua primeira grande distinção é entre o ser e o dever-ser. O ser corresponde ao domínio dos fatos, estudado pelas ciências naturais; o dever-ser, por sua vez, diz respeito às normas, às regras que orientam como os indivíduos devem agir. O Direito pertence a esse segundo campo.

Assim, não se pode compreender o Direito apenas pela observação de comportamentos. Um ato só adquire significado jurídico quando interpretado à luz de uma norma válida. Por exemplo, uma sentença judicial não se resume a palavras ditas num tribunal; ela só tem valor jurídico porque está prevista em uma norma que confere autoridade ao juiz. O mesmo ocorre com testamentos ou contratos: só são válidos se respeitarem as normas legais. Um testamento escrito à mão, sem testemunhas, pode até expressar uma vontade legítima, mas será inválido se não seguir os requisitos exigidos. Kelsen também menciona o caso de uma sessão parlamentar: os gestos e falas dos legisladores, enquanto fatos empíricos, adquirem significado jurídico porque, dentro do sistema normativo, representam a criação de uma lei. Esses atos recebem um “sentido normativo” apenas porque o ordenamento os reconhece como válidos.

A ciência do Direito, portanto, não deve buscar explicações causais, mas analisar a estrutura normativa que conecta as normas entre si. No topo dessa hierarquia está a norma fundamental, uma pressuposição teórica que confere validade ao conjunto do sistema. O Direito não é um fenômeno natural, mas uma construção normativa lógica, e a ciência jurídica deve tratá-lo conforme sua natureza própria, ligada ao dever-ser.


  1. Direito e Moral: ordens normativas distintas

Após separar o Direito da natureza, Kelsen mostra que também é necessário distingui-lo da moral. Embora ambas sejam ordens normativas, elas têm características diferentes e não devem ser confundidas.

A principal distinção está na presença de sanções organizadas no Direito. Quando alguém viola uma norma jurídica, há uma consequência prevista e imposta por uma autoridade legal. Já as normas morais, embora possam gerar reprovação ou sentimento de culpa, não contam com um mecanismo institucional de punição. Kelsen ilustra essa diferença com o exemplo do funcionário público que cobra um imposto e do gangster que exige dinheiro de um comerciante. Ambos realizam atos coercitivos, mas somente o primeiro age amparado por uma norma válida. A ação do gangster está fora do sistema jurídico, embora sua forma externa seja semelhante.

Outra diferença fundamental é que a moral está voltada à intenção interior, enquanto o Direito se preocupa com a conduta externa e seus efeitos. Assim, a validade de um ato jurídico não depende da intenção do agente, mas da conformidade com a norma. Uma doação feita com a melhor das intenções pode ser juridicamente inválida se não cumprir os requisitos legais.

Kelsen também rejeita a ideia de que o Direito deva ser justificado com base em valores morais. Para ele, isso compromete a objetividade da ciência jurídica, já que os valores variam entre culturas e indivíduos. A função da teoria do Direito não é julgar se as normas são justas, mas analisá-las enquanto partes de um sistema normativo.


  1. Objeções à Teoria Pura do Direito: respostas antecipadas de Kelsen

Kelsen dedica parte de sua argumentação à resposta de críticas dirigidas à sua proposta. Uma das mais comuns contesta a separação entre ser e dever-ser, alegando que não se pode dissociar fatos e normas. Kelsen responde que essa confusão elimina o objeto específico da ciência jurídica. Embora os atos jurídicos sejam também fatos empíricos, seu valor jurídico não decorre do que são, mas do significado normativo que lhes é atribuído.

Outra crítica diz respeito à norma fundamental, vista como arbitrária por não ser empírica nem logicamente demonstrável. Kelsen reconhece que se trata de uma hipótese, mas justifica sua adoção como condição metodológica para compreender a validade do sistema jurídico. Sua função é técnica, e não metafísica.

Também há objeções à exclusão da justiça do campo da teoria jurídica. Críticos afirmam que isso tornaria o Direito indiferente aos valores. Kelsen, porém, defende que essa separação garante a neutralidade da ciência jurídica, já que a justiça é um ideal subjetivo, situado em outro plano de análise.

Dessa forma, o autor reconhece e enfrenta objeções à sua teoria, reafirmando a especificidade técnica e normativa do Direito e os limites próprios do discurso científico-jurídico.


Conclusão

A Teoria Pura do Direito busca afirmar a autonomia do Direito como ciência normativa, distinta tanto das ciências naturais quanto da moral. Kelsen mostra que o Direito é um sistema de normas, cuja validade se estabelece por sua posição na estrutura jurídica, e não por sua origem causal ou por seu conteúdo moral. Essa separação permite delimitar com precisão o objeto da ciência jurídica, preservando seu caráter técnico, formal e objetivo.

Mesmo com críticas ao seu formalismo e à suposta indiferença à justiça material, a proposta de Kelsen permanece como uma contribuição decisiva à filosofia do Direito. Ao priorizar a estrutura lógica do sistema jurídico, ele estabelece um modelo de conhecimento jurídico que busca segurança, previsibilidade e racionalidade na aplicação das normas.

Ainda que a objetividade jurídica possa não abranger todas as situações concretas, é preciso reconhecer que ela também promove justiça material nos casos por ela previstos, ao assegurar igualdade de tratamento e estabilidade institucional. Para que o formalismo jurídico não produza injustiças, é necessário que o sistema normativo seja denso o suficiente para prever a maioria dos casos.

Por outro lado, quando esse formalismo se mostra insuficiente, a interpretação jurídica orientada por valores pode ter um papel legítimo — desde que se restrinja aos casos em que a estrutura normativa não ofereça uma solução clara. A proposta de Kelsen, portanto, não elimina o ideal de justiça, mas o desloca para fora da teoria jurídica, reforçando a objetividade como condição para um Direito seguro e funcional.

 

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