Advertência
Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez, poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma humana, que são os fundamentos de sua metafísica.
Na quinta, a ordem das questões de Física que investigou, e, particularmente, a explicação do movimento do coração e algumas outras dificuldades que concernem à Medicina, e depois também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que coisas crê necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e que razões o levaram a escrever.
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PRIMEIRA PARTE
[1] O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar
tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas.
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[5] Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha.
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[7] Não deixava, todavia, de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas
escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas desperta o espírito; que as realizações
memoráveis das histórias o alevantam, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos;
[8] Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo às línguas, e mesmo também à
leitura dos livros antigos, às suas histórias e às suas fábulas. Pois quase o mesmo que
conversar com os de outros séculos, é o viajar. É bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão, como soem proceder os que nada viram. Mas, quando empregamos demasiado tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos demasiado curiosos das coisas que se praticavam nos séculos passados, ficamos ordinariamente muito ignorantes das que se praticam no presente
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[15] … Mas, depois que empreguei alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que devia seguir. O que me deu muito mais resultado, parece-me, do que se jamais tivesse me afastado de meu país e de meus livros.
SEGUNDA PARTE
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[1] … Assim, imaginei que os povos, que, tendo sido outrora semi-selvagens e só pouco a pouco se tendo civilizado, não elaboraram suas leis senão à medida que a incomodidade dos crimes e das querelas a tanto os compeliu, não poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, a começar do momento em que se reuniram observaram as constituições de algum prudente legislador.
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[2] É certo que não vemos em parte alguma lançarem-se por terra todas as casas de uma cidade, com o exclusivo propósito de refazê-las de outra maneira, e de tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam as suas para reconstruí-las, sendo mesmo algumas vezes obrigados a fazê-lo, quando elas correm o perigo de cair por si próprias, por seus alicerces não se estarem muito firmes. A exemplo disso, persuadir-me de que verdadeiramente não seria razoável que um particular intentasse reformar um Estado, mudando-o em tudo desde os fundamentos e derrubando-o para reerguê-lo; nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que, no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança, a fim de substituí-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, após tê-las ajustado ao nível da razão. E acreditei firmemente que, por este meio, lograria conduzir minha vida muito melhor do que se a edificasse apenas sobre velhos fundamentos, e me apoiasse tão-somente sobre princípios de que me deixara persuadir em minha juventude, sem ter jamais examinado se eram verdadeiros.
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[3] … Nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num terreno que é todo meu. De maneira que, se, tendo minha obra me agradado bastante, eu vos mostro aqui o seu modelo, nem por isso quero aconselhar alguém a imitá-lo
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[5] Mas, como um homem que caminha só e nas trevas, resolvi ir tão lentamente, e
usar de tanta circunspecção em todas as coisas, que, mesmo se avançasse muito pouco,
evitaria pelo menos cair. Não quis de modo algum começar rejeitando inteiramente
qualquer das opiniões que porventura se insinuaram outrora em minha confiança, sem que aí fossem introduzidas pela razão, antes de despender bastante tempo em elaborar o projeto da obra que ia empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz.
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[7] O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente e a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
[8] O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.
[9] O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.
[10] E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.
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[11] Essas longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, haviam-me dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram
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[12] … No que não vos parecerei talvez muito vaidoso, se considerardes que, havendo somente uma verdade de cada coisa, todo aquele que a encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se pode saber; e que, por exemplo, uma criança instruída na aritmética, que haja realizado uma adição segundo as regras, pode estar certa de ter achado, quanto à soma que examinava, tudo o que o espírito humano poderia achar. Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética.
[13] Mas, o que me contentava mais nesse método era o fato de que, por ele, estava seguro de usar em tudo minha razão, se não perfeitamente, ao menos o melhor que eu pudesse; além disso, sentia, ao praticá-lo, que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o tendo submetido a qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo aplicá-lo tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as da Álgebra.
TERCEIRA PARTE
[1] E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora,
derrubá-la, ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na arquitetura, nem, além disso, ter traçado cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer onde a gente possa alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se trabalha; assim, para não permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de não deixar de viver desde então de o mais felizmente possível, formei para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar.
[2] A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. Pois, começando desde então a não contar para nada com as minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a exame, estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos. E, embora haja talvez, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como entre nós, parecia-me que o mais útil seria pautar-me por aqueles entre os quais teria de viver; e que, para saber quais eram verdadeiramente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que diziam; não só porque, na corrupção de nossos costumes, há poucas pessoas que queiram dizer tudo o que acreditam, mas também porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela qual se crê uma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se crê nela, amiúde uma se apresenta sem a outra. E, entre várias opiniões igualmente aceites, escolhia apenas as mais moderadas: tanto porque são sempre as mais cômodas para a prática, e verossimilmente40as melhores, pois todo excesso costuma ser mau, como também a fim de me desviar menos do verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, tendo escolhido um dos extremos, fosse o outro o que deveria ter seguido.
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[2]… mas porque não via no mundo nada que permanecesse sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de modo algum torná-los piores, pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter aprovado então alguma coisa, me sentisse na obrigação de tomá-la como boa ainda depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu cessasse de considerá-la tal.
[3] Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras
as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitando nisso
os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma floresta, não devem errar volteando, ora
para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão no fim a alguma parte, onde
verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações
da vida não suportam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal. E isto me permitiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois julgam más.
[4] Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do
que à fortuna, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia suficiente para impedir-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse adquirir, e, assim, para me tornar contente.
[5] Enfim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diversas ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem que pretenda dizer nada sobre as dos outros, pensei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me achava, isto é, empregar toda a minha vida em cultivar minha razão, e adiantar-me, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, segundo o método que me prescrevera. Eu sentira tão extremo contentamento, desde quando começara a servir-me deste método, que não acreditava que, nesta vida, se pudessem receber outros mais doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias, por seu meio, algumas verdades que me pareciam assaz importantes e comumente ignoradas pelos outros homens, a satisfação que isso me dava enchia de tal modo meu espírito, que tudo o mais não me tocava
Além do que, as três máximas precedentes não se baseavam senão no meu intuito de continuar a me instruir: pois, tendo Deus concedido a cada um de nós alguma luz para
discernir o verdadeiro do falso, não julgaria dever contentar-me, um só momento, com as opiniões de outrem, se não me propusesse empregar o meu próprio juízo em examiná-las, quando fosse tempo; e não saberia isentar-me de escrúpulos, ao segui-las, se não
esperasse não perder com isso ocasião alguma de encontrar outras melhores, caso as
houvesse.
[6] Depois de me ter assim assegurado destas máximas, e de as ter posto à parte, com
as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente tentar desfazer-me delas. E, como
esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conversando com os homens, do que continuando por mais tempo encerrado no quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara
Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão-somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. O que consegui muito bem, parece-me, tanto mais que, procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não deparava quaisquer tão duvidosas que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa, quando mais não fosse a de que não continha nada de certo.
E, como ao demolir uma velha casa, reservam-se comumente os escombros para servir à construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram depois para estabelecer outras mais certas.
E, ademais, continuava a exercitar-me no método que me prescrevera; pois não só tomava o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos segundo as suas regras, como reservava, de tempos em tempos, algumas horas, que empregava particularmente em aplicá-lo nas dificuldades de Matemática, ou mesmo também em algumas outras que eu podia tornar quase semelhantes às das Matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras ciências, que eu não achava bastante firmes, como vereis que procedi com várias que são explicadas neste volume. E assim, sem viver, aparentemente, de forma diferente daqueles que, não tendo outro emprego senão passar uma vida doce e inocente, procuram separar os prazeres dos vícios, e que, para gozar de seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os divertimentos que são honestos, não deixava de persistir em meu desígnio e de progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me limitasse a ler livros ou freqüentar homens de letras.
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QUARTA PARTE
[1] … De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida52, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável
E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.
[2] Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não
tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é.
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[4] … Mas não podia acontecer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois tirá-la do nada era manifestamente impossível; e, visto que não há menos repugnância em que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que em admitir que do nada procede alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, isto é, para explicar-me numa palavra, que fosse Deus.
Pois segundo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, bastava considerar, acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam.
mas, por já ter reconhecido em mim mui claramente que a natureza inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a dependência é manifestamente um defeito, julguei por aí que não podia ser uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, por conseguinte, ele não o era, mas que, se haviam alguns corpos no mundo, ou então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem inteiramente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal sorte que não pudessem subsistir sem ele um só momento
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[6] Mas o que leva muitas pessoas a se persuadirem de que há dificuldade conhecê-
lo, e mesmo também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma acostumados a nada considerar senão imaginando, que é uma forma de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E isto é assaz manifesto pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas escolas, que nada há no entendimento que não haja estado primeiramente nos sentidos, onde, todavia, é certo que as idéias de Deus e da alma jamais estiveram.
[7] Enfim, se há ainda homens que não estejam bem persuadidos da existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam que todas as outras coisas, das quais se julgam talvez certificados, como a de terem um corpo, haver astros e uma terra, e coisas semelhantes, são ainda menos certas.
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Pois, em primeiro lugar, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, a saber, que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, não é certo senão ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós nos vem dele. Donde se segue que as nossas idéias ou noções, sendo coisas reais, e provenientes de Deus em tudo em que são claras e distintas, só podem por isso ser verdadeiras.
De sorte que, se temos muitas vezes outras que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, isto é, são assim confusas em nós, porque nós não somos de todo perfeitos E é evidente que não repugna menos admitir que a falsidade ou a imperfeição procedam de Deus, como tal, do que admitir que a verdade ou a perfeição procedam do nada.
Pois, enfim, quer estejamos em vigília, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão. E deve-se observar que digo de nossa razão e de modo algum de nossa imaginação, ou de nossos sentidos Porque, embora vejamos o sol mui claramente, não devemos julgar por isso que ele seja, apenas, da grandeza que o vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no corpo de uma cabra, sem que devamos concluir, por isso, que no mundo há
uma quimera.
QUINTA PARTE
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[12] … De resto, eu me alonguei um pouco aqui sobre o tema da alma, porque é dos mais importantes; pois, após o erro dos que negam Deus, que penso haver refutado suficientemente mais acima, não há outro que afaste mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza que a nossa, e que, por conseguinte, nada temos a temer, nem a esperar, depois dessa vida, não mais do que as moscas e as formigas; ao passo que, sabendo-se o quanto diferem, compreende-se muito mais as razões que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, por conseguinte, que não está de modo algum sujeita a morrer com ele; depois, como não se vêem outras causas que a destruam, somos naturalmente levados a julgar por isso que ela é imortal.
SEXTA PARTE
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[2] … Pois elas me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza.
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[3] .. Mas a ordem que guardei nisso foi a seguinte. Primeiramente, procurei encontrar em geral os princípios, ou primeiras causas, de tudo quanto existe, ou pode existir, no mundo, sem nada considerar, para tal efeito, senão Deus só, que o criou, nem tirá-las de outra parte, exceto de certas sementes de verdades que existem naturalmente em nossas almas. Depois disso, examinei quais os primeiros e os mais ordinários efeitos que se podem deduzir dessas causas e parece-me que, por aí, encontrei céus, astros, uma terra, e mesmo, sobre a terra, água, ar, fogo, minerais e algumas outras dessas coisas que são as mais comuns de todas e as mais simples, e, por conseguinte, as mais fáceis de conhecer.
Depois, quando quis descer às que eram mais particulares, apresentaram-se-me tão diversas, que não acreditei que fosse possível ao espírito humano distinguir as formas ou espécies de corpos que existem sobre a terra, de uma infinidade de outras que poderiam nela existir, se fosse a vontade de Deus aí colocá-las, nem, por conseqüência, torná-las de nosso uso, a não ser que se vá ao encontro das causas pelos efeitos e que se recorra a muitas experiências particulares.
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Mas cumpre que eu confesse também que o poder da natureza é tão amplo e tão vasto e que esses princípios são tão simples e tão gerais, que quase não notei um |94único efeito particular que eu já não soubesse ser possível deduzi-lo daí de várias maneiras diferentes, e que a minha maior dificuldade é comumente descobrir de qual dessas maneiras o referido efeito depende.
Pois, para tanto, não conheço outro expediente, senão o de procurar novamente algumas
experiências que sejam tais que seu resultado não seja o mesmo, se explicado de uma
dessas maneiras e não de outra
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Porque, com efeito, quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada, em comparação com o que ignoro, e que não desespero de poder aprender; pois acontece quase o mesmo aos que descobrem pouco a pouco a verdade nas ciências, que àqueles que, começando a enriquecer, têm menos dificuldade em realizar grandes aquisições, do que tiveram outrora, quando mais pobres, em realizar outras muito menores.
Ou então se pode compará-los aos chefes de exército, cujas forças costumam crescer à proporção de suas vitórias, e que necessitam de mais habilidade, para se manterem após a perda de uma batalha, do que possuem, depois de vencê-la, para tomar cidades e províncias.
Pois é verdadeiramente dar batalhas procurar vencer todas as dificuldades e os erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder uma acolher qualquer falsa opinião no tocante a uma matéria um pouco geral e importante;
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[6] … Todavia, a maneira de filosofar é muito cômoda para aqueles que possuem tão-somente espíritos muito medíocres; pois a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem é causa de que possam falar de todas as coisas tão atrevidamente como se as soubessem, e sustentar tudo o que dizem contra os mais sutis e os mais hábeis sem que haja meio de convencê-los. Nisso se me parecem semelhantes a um cego que, para se bater sem desvantagem com alguém que vê, o fizesse vir ao fundo de uma adega escura; e posso dizer que esses têm interesse que eu me abstenha de publicar os princípios da filosofia de que me sirvo: pois, sendo muito simples e muito evidentes, como o são, faria quase o mesmo, publicando-os, que se abrisse algumas janelas e fizesse entrar a luz nessa mesma adega, para onde desceram para se bater.
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[7] É verdade que, no concernente às experiências que podem servir para isso, um
único homem não poderia bastar para as fazer todas; mas não poderia também empregar utilmente outras mãos que não as suas, exceto as dos artífices ou pessoas tais a quem pudesse pagar, e a quem a esperança do ganho, que é um meio muito eficaz, faria executar exatamente todas as coisas que ele lhes prescrevesse. Pois, quanto aos voluntários, que, por curiosidade ou desejo de aprender, se oferecessem talvez para o ajudar, além de comumente apresentarem mais promessas do que resultado e de não fazerem senão belas proposições de que nenhuma jamais logra êxito, desejariam infalivelmente ser pagos pela explicação de algumas dificuldades, ou ao menos por cumprimentos e conversas inúteis, que lhe custariam sempre algum tempo, por pouco que perdesse.
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[8] Todas essas considerações juntas foram causa, há três anos, de que eu não
quisesse divulgar o tratado que tinha em mãos, e mesmo que adotasse a resolução de não elaborar nenhum outro, durante minha vida, que fosse tão geral, nem do qual se pudesse conhecer os fundamentos de minha Física. Mas em seguida houve de novo duas outras razões, que me obrigaram a apresentar aqui alguns ensaios particulares, e a prestar ao público alguma conta de minhas ações e de meus desígnios. A primeira é que, se deixasse de fazê-lo, muitos, que souberam da intenção que eu alimentava anteriormente de mandar imprimir alguns escritos, poderiam imaginar que as causas pelas quais me abstivera disso fossem mais desvantajosas para mim do que na realidade o são. Pois, embora não ame a glória em excesso, ou mesmo, se ouso dizê-lo, a deteste, na medida em que a julgo contrária ao repouso, que estimo acima de todas as coisas, todavia nunca procurei esconder minhas ações como crimes, nem usei muitas precauções para ficar desconhecido; tanto por crer que isso me faria mal, como por saber que me daria uma espécie de inquietação, que seria mais uma vez contrária ao perfeito repouso de espírito que procuro.
E visto que, tendo-me sempre mantido assim indiferente entre o cuidado de ser conhecido e o de não sê-lo, não pude evitar de conquistar certa reputação, pensei que devia fazer o máximo para me livrar ao menos de a ter má. A outra razão que me obrigou a escrever este livro é que, vendo todos os dias mais e mais o retardamento que sofre o meu intento de me instruir, por causa de uma infinidade de experiências de que necessito, o que me é impossível realizá-lo sem a ajuda de outrem, embora não me lisonjeie tanto a ponto de esperar que o público tome grande parte em meus interesses, todavia não quero faltar tanto a mim próprio que dê motivo aos que me sobreviverão para me censurar um dia de que eu podia ter-lhes deixado muitas coisas bem melhores do que as que deixei, se não me tivesse negligenciado demais em fazê-los compreender em que poderiam contribuir para os meus projetos.
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[12] Além disso, não quero falar aqui, em particular, dos progressos que no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com qualquer promessa que não tenha certeza de cumprir: mas direi unicamente que resolvi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa exceto procurar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que dele se possam tirar normas para a
Medicina, mais seguras do que as adotadas até agora; e que minha inclinação me afasta tanto de qualquer espécie de outros desígnios, principalmente dos que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar a outros, que, se algumas circunstâncias me compelissem a
dedicar-me a eles, não creio que fosse capaz de lograr êxito.
Pelo que, faço aqui uma declaração que, sei muito bem, não poderá servir para me tornar notável no mundo, mas tampouco tenho o qualquer desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais obrigado àqueles graças aos quais desfrutarei sem impedimento do meu lazer, do que o seria aos que me oferecessem os mais honrosos empregos da terra.
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