Espelhos que não caminham: crítica à dissolução da síntese apolíneo-dionisíaca em Nietzsche

Espelhos que não caminham: crítica à dissolução da síntese apolíneo-dionisíaca em Nietzsche

Ubirajara T Schier – Estética – 2025/2

Introdução

Friedrich Nietzsche é um dos principais críticos da tradição racionalista da filosofia ocidental. Em especial em sua obra Crepúsculo dos Ídolos, o autor direciona seus ataques à razão filosófica enquanto princípio de negação da vida, sugerindo que a arte, sobretudo em seu aspecto dionisíaco, seria sua alternativa afirmadora. Entretanto, tal valorização unívoca da arte contrasta com a proposta inaugural de O Nascimento da Tragédia, em que Nietzsche propõe uma tensão produtiva entre os princípios apolíneo (forma, medida, razão) e dionisíaco (embriaguez, excesso, instinto), como estrutura constitutiva da própria saúde espiritual grega.

Este artigo parte da hipótese de que Nietzsche, ao abandonar a possibilidade de integração entre Apolo e Dionísio, incorre na unilateralidade que ele mesmo denuncia nos sistemas metafísicos: a absolutização de um princípio em detrimento de sua contraparte. Nossa crítica não visa reabilitar a razão em sua forma idealista, mas destacar que seu esvaziamento — assim como o da arte — decorre da cisão entre essas duas dimensões. É precisamente essa dissociação que compromete a possibilidade de uma resposta afirmativa ao sofrimento.

Para desenvolver tal crítica, tomamos como imagem interpretativa a metáfora do cego e do aleijado: o cego, dotado de vigor, mas destituído de visão, representa a arte desprovida de lucidez crítica; o aleijado, que enxerga o caminho, mas rasteja com esforço, representa a razão quando desvinculada da experiência estética. Ambos possuem potência parcial, mas somente em sua integração podem oferecer uma via de superação do sofrimento — aqui simbolizado como a floresta em chamas. Trata-se, portanto, de mostrar que a ação transformadora não se realiza por meio da supremacia de um polo, mas sim por sua articulação dinâmica.

  1. A razão isolada: lucidez estéril

No fragmento intitulado “A ‘razão’ na filosofia”, Nietzsche empreende uma crítica direta à razão que busca fixar o devir em categorias, conceitos e essências. Essa razão, herdada da tradição platônico-cristã, visa estabilizar a experiência e negá-la em sua fluidez. No entanto, o diagnóstico nietzschiano tende a operar uma generalização: ele denuncia a razão não apenas em seu uso degenerado, mas enquanto estrutura.

A razão, em sua acepção mais ampla, comporta também a capacidade de crítica, de organização simbólica e de elaboração conceitual do mundo. Se isolada da sensibilidade e do instinto, de fato, ela se torna árida, formalista, distanciada da vida. Mas isso não implica que esteja destituída de potência de ação. O filósofo racional — assim como o aleijado da metáfora — pode discernir o caminho, mas seu deslocamento é lento, dificultoso, sem vigor próprio. A lucidez sem força impulsiva torna-se contemplação impotente.

Nietzsche, ao rejeitar a razão em bloco, negligencia essa dimensão produtiva que subsiste mesmo em sua fragilidade. Em vez de pensar sua reintegração à arte, propõe sua substituição. Com isso, sacrifica a possibilidade de síntese — e não a radicaliza.

  1. A arte isolada: impulso desorientado

Em contraposição, Nietzsche exalta a arte como potência afirmadora da existência. No Crepúsculo dos Ídolos, a arte não apenas é redentora, mas constitui a própria essência do pensamento saudável. Sobretudo na figura do Dionísio trágico, ela é apresentada como celebração da dor, como transfiguração estética do caos da vida.

No entanto, a arte, quando absolutizada, também incorre em unilateralidade. Quando desconectada do crivo crítico da razão, a arte pode converter-se em embriaguez estética, em produção de intensidades sem orientação, em espetáculo vazio. O artista entregue exclusivamente à sensibilidade — como o cego da metáfora — move-se com energia, mas sem direção. Seu gesto criador é potente, mas errático. Ele atravessa a floresta, mas sem distinguir saída ou sentido.

Nietzsche, ao abandonar a tensão produtiva entre Apolo e Dionísio, desfaz a própria estrutura que, segundo ele, sustentava a grande arte trágica. Se o apolíneo organiza, e o dionisíaco impulsiona, a supressão de um torna o outro disforme. A dissolução da forma não gera liberdade, mas dispersão.

  1. Síntese interrompida: crítica à inflexão tardia de Nietzsche

A imagem do cego e do aleijado na floresta em chamas permite reformular o problema fundamental da crítica nietzschiana: como superar o sofrimento humano sem recair na negação da vida? Se o sofrimento é inevitável, a tarefa filosófica não é anulá-lo, mas metabolizá-lo — transfigurá-lo em potência.

O cego (arte) e o aleijado (razão), isolados, representam modos incompletos de lidar com a dor. A arte sente, mas não compreende; a razão compreende, mas não se move. Unir suas potências, sem anular suas tensões, é a única via possível para uma ação que não seja nem puramente racional, nem puramente estética, mas integralmente afirmadora.

Nietzsche esteve próximo de propor essa síntese em O Nascimento da Tragédia. Sua leitura da tragédia grega como fusão instável e criativa entre Apolo e Dionísio aponta para um horizonte filosófico de integração. No entanto, em sua obra tardia, essa direção é interrompida. Em Crepúsculo dos Ídolos, o dionisíaco torna-se absoluto, e o apolíneo é descartado como resíduo metafísico. A crítica à razão torna-se renúncia à forma; a valorização da arte torna-se dogma.

Com isso, Nietzsche se afasta da complexidade que antes abraçava. Sua crítica à unilateralidade racional termina por gerar uma nova forma de unilateralidade, agora estética. A floresta em chamas permanece — e os caminhos possíveis à sua superação são abandonados.

Conclusão

A crítica de Nietzsche à razão metafísica foi decisiva para desconstruir os alicerces dogmáticos do pensamento ocidental. Sua valorização da arte como expressão de uma vida afirmativa permanece uma contribuição incontornável. Contudo, ao abandonar o projeto de integração entre Apolo e Dionísio, Nietzsche perdeu a oportunidade de desenvolver uma filosofia que não apenas denunciasse os ídolos, mas fundasse uma nova aliança entre pensamento e criação, entre lucidez e impulso.

Neste artigo, argumentamos que o sofrimento humano — aqui figurado como a floresta em chamas — não se supera pela supremacia de uma força sobre a outra, mas pela articulação entre razão e sensibilidade. A razão vê, mas rasteja; a arte caminha, mas não vê. Ambas, unidas, podem orientar uma ação que seja ao mesmo tempo lúcida e vital.

Nietzsche poderia ter desenvolvido essa via em sua filosofia, mas sua inflexão tardia interrompeu esse percurso. A imagem final é a de um espelho que reflete com beleza a realidade, mas que não caminha por ela. E espelhos, por mais nítidos que sejam, não atravessam a floresta em chamas — apenas a contemplam.

Be the first to comment on "Espelhos que não caminham: crítica à dissolução da síntese apolíneo-dionisíaca em Nietzsche"

Leave a comment