A tragédia entre a forma e a experiência: confronto com a Poética de Aristóteles a partir de uma crítica subjetivista

A tragédia entre a forma e a experiência: confronto com a Poética de Aristóteles a partir de uma crítica subjetivista

Ubirajara T Schier – Filosofia da Arte: 2025/2

A Poética de Aristóteles é um marco fundacional na tradição filosófica ocidental ao tentar estabelecer os princípios estruturais da arte, particularmente da tragédia. Ao definir a tragédia como “a imitação de uma ação importante e completa, […] que suscita compaixão e terror, e por meio disso purga essas emoções”, Aristóteles propõe mais que uma descrição de gênero: ele oferece uma teoria normativa da arte, pautada em suas formas constitutivas (fábula, caráter, elocução, pensamento, canto, espetáculo) e em sua finalidade (catarse). A arte, para Aristóteles, possui uma essência objetiva e cumpre uma função ética e pedagógica no ordenamento racional da vida; diferentemente disso, sustento aqui uma crítica subjetivista à ideia de que a arte possa ou deva ser definida por estruturas, finalidades ou efeitos fixos. Para mim, a arte não possui essência estável, e não se realiza por meio de formas ou funções, mas na experiência subjetiva que provoca. A crítica subjetivista, em si, confronta diretamente os fundamentos filosóficos da Poética, não apenas em seus conteúdos estéticos, mas em sua própria lógica definicional.

Aristóteles concebe a tragédia como a forma mais elevada da mímesis, ao representar ações nobres por meio de uma estrutura organizada capaz de produzir efeitos éticos como a purgação emocional. A arte, nesse modelo, é orientada pela razão: deve ter unidade de ação, verossimilhança e coerência interna. A fábula é sua alma, e o valor da obra depende de sua conformidade com princípios compositivos universais. A Poética inaugura, assim, uma estética normativa que associa arte, ética e racionalidade como dimensões complementares de um mesmo projeto filosófico.

Minha posição, em contraste, considera que nenhuma estrutura é condição necessária para a existência da arte. O que torna algo artístico não é sua forma, seu objeto nem seu efeito universalizável, mas o modo como ressoa com a subjetividade de alguém. Para além das categorias da Poética, entendo a arte como um acontecimento entre mundos interiores, sem garantias externas. Mesmo que ninguém além do próprio autor reconheça algo como arte, se ele a vivencia como tal, essa vivência já lhe confere legitimidade.

A essa altura, surgem objeções inevitáveis. A primeira — comum ao pensamento aristotélico e a seus herdeiros modernos — é que, sem critérios objetivos, o conceito de arte se dilui. “Se tudo pode ser arte, então nada é arte”, ou, em outras palavras: o que distingue a Monalisa de uma cadeira quebrada? Para Aristóteles, a resposta seria clara: a Monalisa (ainda que anacrônica ao seu tempo) teria valor por sua forma, unidade, representação elevada e capacidade de provocar emoções ordenadas. Já a cadeira quebrada, por não corresponder a nenhum desses critérios, sequer entraria na consideração artística. Para mim, no entanto, essa distinção não é ontológica, mas experiencial. A Monalisa pode não significar nada para alguém, enquanto a cadeira quebrada, se provocar comoção, estranhamento ou sentido, poderá ser considerada arte — talvez apenas por seu autor, ou nem mesmo por ele, mas por um único espectador. E isso já bastaria. O valor artístico, assim, não reside na obra em si, mas no efeito que ela desencadeia na interioridade de quem a experimenta.

Também o problema da forma é resolvido de maneira oposta. Enquanto Aristóteles afirma que a fábula é a alma da tragédia e que, sem ela, a obra se torna sem sentido, defendo que a arte pode ser informe, caótica, lacunar, fragmentária — e, ainda assim, produzir experiências estéticas plenas. Obras como Esperando Godot[1], Rei da Vela[2] ou os textos de Sarah Kane[3] rompem com todas as exigências formais da tragédia aristotélica, mas seguem sendo experiências artísticas contundentes, que desafiam, inquietam e desestabilizam o espectador.

Outra objeção possível à minha crítica diz respeito às instituições da arte: “Como justificar a crítica, os museus, os editais ou os prêmios, se tudo depende da experiência subjetiva?” Aristóteles, ao oferecer critérios objetivos de qualidade artística, permite a construção de uma hierarquia estética que fundamenta tanto a crítica quanto o ensino das artes. Ao passo que, para mim, essas instituições não são árbitros da arte, mas apenas espaços de mediação de experiências. O museu não legitima a obra — apenas a abriga. O financiamento não deve seguir normas universais de excelência, mas sim afinidades estéticas compartilhadas. A crítica, longe de ser normativa, configura-se como uma forma de experiência subjetiva, que pode ser valiosa ou irrelevante, conforme o espectador.

Para reforçar a distinção proposta, é preciso considerar casos extremos. A Poética, em Aristóteles, organiza; minha crítica, ao contrário, desordena — porém liberta. E por isso enfrenta objeções mais difíceis: “E se alguém expõe um vídeo real de violência? E se alguém se tatua com uma suástica e alega que é performance? Isso também é arte?” Para Aristóteles, a resposta seria um “não” seguro: não há tragédia sem a estrutura e o fim apropriados. Já na minha visão, essas manifestações podem ser arte, sim, se provocarem uma experiência subjetiva estética — seja de repulsa, desconforto ou reflexão. Isso não significa que devam ser legalmente permitidas ou eticamente celebradas. A arte não está acima da lei — mas também não é julgada por ela. O único limite legítimo da arte é legal, não moral. A moral é relativa; a lei é social. A arte, para mim, não precisa ser ética, bela ou útil — apenas vivida. Aristóteles afirma, no capítulo IX da Poética, que a poesia é mais filosófica que a história, porque trata do universal. Minha crítica recusa essa hierarquia. A arte não é superior por ensinar verdades abstratas, mas valiosa quando atinge a intimidade concreta do sujeito. O universal é uma ficção útil à razão, mas a arte — ao menos a que importa — vive do particular, do contraditório, do que escapa às categorias.

Finalmente, resta a objeção mais sutil: “Essa visão não abriria caminho para o cinismo, a manipulação ou a fraude artística?”. E se alguém se vale da linguagem artística para mentir, chocar ou manipular, sem nenhuma sinceridade? Aqui, novamente, o risco é real. Mas o engano e a falsidade também ocorrem em obras que obedecem à forma aristotélica. A má-fé não é monopólio da arte subjetivista. A diferença é que, nesta concepção, o critério é a autenticidade da experiência, não a autoridade da forma. Se uma obra toca alguém, ainda que tenha sido criada com intenção cínica, o fenômeno artístico aconteceu — independentemente da origem.

Em síntese: Aristóteles tentou proteger a arte do caos, definindo-a por suas partes e por sua finalidade. Eu sustento que é no próprio caos que reside a potência da arte. A tragédia, na Poética, é uma forma racionalmente organizada, voltada à purificação. Para mim, ela é apenas uma entre infinitas possibilidades de experiência estética. A arte não se define nem se encerra: ela acontece — ou não — no abismo entre sujeitos.

Concluo reconhecendo a Poética como uma tentativa monumental — e pioneira — de compreender racionalmente a arte dentro do arcabouço filosófico de seu tempo. Aristóteles ofereceu à tradição ocidental os primeiros instrumentos conceituais para tratar a arte com o mesmo rigor analítico aplicado à natureza, à ética e à política. No entanto, quando sua obra é lida não como investigação situada, mas como norma universal, ela se converte numa armadura conceitual rígida demais para conter o corpo fluido, fragmentário e instável da arte contemporânea. A arte não é aquilo que se encaixa — é aquilo que nos escapa, nos transforma e nos perturba. O que a Poética tentou delimitar, proponho deixar em suspensão — não por desprezo, mas precisamente por fidelidade àquilo que, na arte, mais importa: sua capacidade de desestabilizar os próprios critérios com que tentamos compreendê-la.

[1] Esperando Godot, de Samuel Beckett, é considerada uma das mais emblemáticas peças do teatro do absurdo. Escrita em 1948–49, rompe com a estrutura dramática clássica ao apresentar personagens que esperam indefinidamente por alguém que nunca chega, sem progressão narrativa clara ou finalidade ética. A ausência de ação, a repetição e a ambiguidade existencial desafiam diretamente os princípios de unidade, verossimilhança e catarse definidos por Aristóteles na Poética.

[2] O Rei da Vela, escrita por Oswald de Andrade em 1933, mas encenada apenas em 1967, constitui uma ruptura radical com o teatro realista brasileiro. Sua linguagem anárquica, fragmentária e satírica desmonta as convenções da fábula aristotélica ao ironizar a tragédia burguesa e transformar o palco em espaço de confronto político e estético. A peça opera no limite entre forma teatral e manifestação crítica, assumindo o caos como estratégia.

[3] Sarah Kane, dramaturga britânica dos anos 1990, é conhecida por obras como Blasted e 4.48 Psychosis, que tensionam os limites do teatro ao tratar de temas como violência extrema, depressão e suicídio. Seus textos frequentemente abandonam a estrutura narrativa tradicional, adotando fragmentação, silêncios e cenas de brutalidade que dispensam linearidade causal e desestabilizam o espectador. A experiência estética aí não visa à purgação aristotélica, mas ao abalo radical da consciência (obs: a depressão fez com que Sarah Kane cometesse suicídio em 20 de fevereiro de 1999 ao se enforcar em um banheiro do London’s King’s College Hospital, aos 28 anos).

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