NomeCompleto | Titulo | Pagina | Citacao |
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GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 15 | [ Posição do Problema ]
O problema que o autor deste trabalho se propõe analisar nas páginas que seguem não é o cogito ou de qualquer outro princípio semelhante ou de análoga função. Não é tampouco o da legitimidade de um tal ponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui é o da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele específico comportamento que leva o homem a ocupar-se da filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Sócrates.* * Cf.PLATÃO. Apologia de Sócrates. 29a e 31d – Em carta a Niethammer, a esposa de Hegel atribui a seu marido as seguintes palavras: “Ser condenado por Deus a ser um filósofo!” |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 37 | [ ANÁLISE DA ADMIRAÇÃO INGÊNUA ]
Devemos analisar inicialmente o fenômeno da admiração tal como se verifica em sua manifestação primária, em seu primeiro desabrochar, ainda dentro de um horizonte de ingenuidade e espontaneidade, buscando-lhe as características mais fundamentais. Quais são essas características e como compreendê-las ? A primeira é o “sentido de abertura” que a acompanha. E a dimensão dessa característica pode ser elucidada a partir de um comportamento antiadmirativo por excelência e em um sentido radical: referimo-nos à atitude pessimista. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 40 | [ ANÁLISE DA ADMIRAÇÃO INGÊNUA ]
Compreende-se, assim, Nietzche, quando afirma: “O pessimismo perfeito seria aquele que compreende a mentira, mas é, ao mesmo tempo, incapaz de desfazer-se de seu ideal: abismo entre querer e conhecer”. É precisamente este abismo que não se verifica na admiração ingênua, pois no ato admirativo o ideal e o real como que coincidem, e, por isto mesmo, a realidade se manifesta ao admirante como dotada de plenitude de sentido. E não só se desfaz o abismo entre o querer e o conhecer, mas o pessimismo, como toda e qualquer modalidade de comporamento egocêntrico, é anulado. Assim, a primeira característica da admiração ingênua é a afirmação, compreendida como abertura, do outro como outro, que revela do sentimento de pura disponibilidade, amorosa e desinteressada. Esta disponibilidade, se traz em seu seio o reconhecimento do outro como outro, do diferente como diferente, nos conduz a uma segunda característica da admiração, pressuposto fundante da primeira: “a consciência”. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 43 | [ ANÁLISE DA ADMIRAÇÃO INGÊNUA ] – A Consciência
O animal vive de tal modo imbriacado em seu meio ambiente, que todo o seu comportamento se determina por um imanentismo funcional. Por isto, a adaptação plena do animal ao seu meio ambiente e a sua possibilidade de sobrevivência coincidem com a sua impossibilidade de se destacar-se da natureza, de tomar distância do “seio que o gerou”, para usar uma expressão de Rilke. O fato de não poder distanciar-se do meio que o cerca, de não poder reconhecê-lo como heterogêneo e de não lhe ser possível, em conseqüência, adotar um comportamento indicativo, constitui precisamente o abismo que separa o animal do homem, abismo que se impõe como um fato irrefutável. O animal apenas age; o homem age e sabe que age. A primeira é a “distância”. O homem sente-se ou sabe-se separado daquilo que o cerca. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 46 | [ ANÁLISE DA ADMIRAÇÃO INGÊNUA ] – A Consciência
A segunda característica da consciência ingênua esclarece estes aspectos e permite compreender melhor o seu caráter relacional. Própria da consciência humana é a experiência da heterogeneidade, isto é, a experiência do radicalmente outro, do diferente em si e em si mesmo. A consciência revela-se, assim, como o prossuposto fundamental, fundante, de todo ato admirativo. E assim como o sentimento de distância, por outro lado, não menos presente, está o sentido de heterogeneidade, o reconhecimento do outro como outro. E somente a partir desta visão do diferente pode especificar-se o comportamento admirativo. Na admiração ingênua encontramos, portanto, um ato de confiança, de fidelidade amorosa, que tende a reduzir a distância própria da consciência a um mínimo, no sentido de que a admiração não sofre com a separação entre consciência e objeto, pois, bem ao contrário, entrega-se sem reservas, donde o seu caráter de ingenuidade, de inocência, de degustação desprevenida do real. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 56 | [ O COMPORTAMENTO DOGMÁTICO ]
E a primeira sugestão que devemos aceitar desta página de Sartre é justamente essa: a existência dogmática vive dentro de um mundo sempre dado, desde sempre já feito, e não lhe ocorre pôr seriamente em dúvida este mundo. Daí este sentir-se em casa, pois o dogmático sabe que mesmo quando “as coisas não andam bem”, este mundo lhe pertence assim como uma parte de seu corpo. O próprio desta postura natural é aceitar o mundo como dado, quer dizer, como uma moldura desde sempre constituída, e dentro desta moldura acontece a existência dogmática. Há nesta atitude uma compreensão implícita daquilo que o mundo é; e uma compreensão tal que torna possível a minha atuação dentro e a partir do mundo, isto é, do horizonte total, sempre imperguntado (ao menos em um sentido radical) e pleno sentido, que vai possibilitar todo comportamento. Se ocorre hesitar, se sobrevém uma atitude de dúvida, esta atitude diz respeito apenas a um aspecto da realidade, deixando o horizonte total intato; a compreensão implícita de mundo permanente não problematizável. Tudo o que de excepcional aconteça, será como destaque sobre o fundo inabalável do mundo desde sempre dado: a excepcionalidade do excepcional supões precisamente aquele mundo familiar, aceito como moldura constituída. Este excepcional, portanto, longe de abalar a postura natural, não faz mais do que confirmá-la. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 62 | [ O COMPORTAMENTO DOGMÁTICO ] – Postura Crítica – Inutilidade da Filosofia
Normalmente, a ação humana se processa dentro do âmbito de uma dogmaticidade fundamental, no sentido de que a tese geral permanece sem ser questionada, e isto naquela tríplice antes analisada: gnosiológica, ontológica e axiológica. Isto não quer dizer, porém, que, uma vez abandonada a postura dogmática, a ação perca sua razão de ser. Bem ao contrário, a postura crítica dará à ação um outro fundamento, aceito explicitamente e destituído de dogmatismo e ingenuidade. A postura crítica caracteriza-se pelo ato de questionar estes fundamentos da ação, de pô-los em dúvida. Compreende-se, assim, que para um homem de ação a filosofia dificilmente possa ter um sentido maior e ser algo mais do que perda de tempo. A ação estabelece-se na tese geral, dando por resolvido precisamente aquilo que a filosofia deve problematizar. Neste sentido, pode-se aceitar a afirmação de Hegel de que a filosofia é o mundo às avessas. Se a ação dá por resolvido o problema do pressuposto de toda ação, o homem de ação volta as costas para este fundamento, e orienta-se para diante, para o futuro, para a construção em um sentido prático. O filósofo, ao contrário, não dá as costas ao fundamento da ação, à tese geral, mas a interroga, incidindo em um comportamento que pode ser – como o mostra o caso de Sócrates – irritante para o homem de ação ou, de um modo geral, simplesmente não problematizador. Por isto, pode Heidegger dizer que a filosofia não serve para nada, não tem dimensão prática, utilitária, imediata. Contudo, quando o homem prático faz tal tipo de afirmação, ele quer dizer que a filosofia é inútil. O filósofo, ao contrário, quando afirma que a filosofia não serve para nada, ele quer dizer que o homem pode, além de agir, perguntar pelos fundamentos da ação, problematizando a validez da tese geral, com o fito, inclusive, de legitimar criticamente todo o mundo da ação prática. Mas assim fazendo, o filósofo vê o mundo às avessas, isto é, não na imanência de seu fieri, em sua nervosidade construtiva ou revolucionária, mas na busca de uma compreensão de seus fundamentos, de um acesso precisamente àquela dimensão que o homem prático esquece, quando se deixa levar pelas imposições da ação. O filósofo abandona a postura dogmática em favor de uma postura crítica. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 65 | [ O COMPORTAMENTO DOGMÁTICO ] – Espírito Crítico x Atividade Científica
Assim, o espírito crítico que se pode constatar na atividade científica nunca é radical, no sentido de que os fundamentos próprios de cada ciência lhe permanecem vedados, na medida exata em que se reduz a uma determinada postura científica. Conseqüentemente, a tese geral, em seu tríplice aspecto, permanece, necessariamente, imperguntada. Todo comportamento teorético não-filosófico é, portanto, metafísicamente ingênuo e dogmático. Isto, contudo, longe de ser um erro ou desvantagem, é justamente o que possibilita a pesquisa científica: atender a aspectos da realidade, sem perguntar pela realidade, problema que deverá ser enfrentado pelo filósofo. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 67 | [ O COMPORTAMENTO DOGMÁTICO ]
O comportamento da postura dogmática compreende-se dentro daquilo que podemos chamar de indiferença ontológica. Não se verificam problematizações mais radicais, e, em última análise, não há consciência do problema do ser; não se pergunta por que é que existe a realidade, qual é sua razão de ser, o seu fundamento, ou pela legitimidade de tais problemas: problemas todos que lhe são alheios e que permitem falar em indiferença ontológica. O homem desdobra a aventura de sua vida dentro de um plano ôntico, em contato com os mais diversos entes – coisas, pessoas, acontecimentos, etc. Quando faz ciência, pergunta como se processa a realidade: quando se propõe uma reforma ativa, assume uma tarefa, que pode ser realizada hoje de uma maneira e amanhã de outra, sem preocupar-se, neste comportamentos, com uma problematização radical. Move-se no plano ôntico, sem passar ao plano ontológico. Permanece na diferença ôntica e na indiferença ontológica. Ora, se a análise feita é correta, devemos, então, perguntar: – Como abandona o homem a postura dogmática para assumir a filosófica ? Como se lhe abrem as portas que dão acesso à filosofia ? Como supera aquele esquecimento fundamental do qual vive, entregue às suas tarefas todos os dias ? Vimos como o homem se move a partir de uma tese geral, e inferimos estar ele perdido no mundo. Como, porém, pode o homem superar esta situação, abrindo-se para a sua própria realidade e para a realidade do mundo ? Como chega a tomar consciência da tese geral, esquecida sem saber-se esquecida, e em função da qual vive ? Ou para tudo resumir: como consegue superar a dogmaticidade ? |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 70 | [ A RUPTURA DA DOGMATICIDADE E A EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – O Filosofar x Mito da Carverna
De fato, já Platão aponta perspectivas que vêm ao encontro de nossa análise. Refere-se ao problema na República, quando relata, em páginas de inesgotável penetração, o mito da caverna. Aceitando este ponto de vista Platônico, devemos analisar a seguir a importância, para o comportamento filosófico, da experiência negativa. A análise da postura dogmática nos revelou um homem adaptado a um mundo já feito, vivendo, por isto, dentro de uma segurança fundamental. Mas esta segurança termina por ceder o seu lugar a uma certa desconfiança: este mundo todo e seus valores que presidem a existência humana talvez não sejam tão inabaláveis. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 73 | [ A RUPTURA DA DOGMATICIDADE E A EXPERIÊNCIA NEGATIVA ]
Devemos submeter a experiência negativa a uma análise, com a finalidade de apurar o seu significado para o comportamento filosófico. Através de sua caracterização chegaremos a compreender que, através dela, e só através dela, pode o homem abandonar a postura dogmática, e aceder, conseqüentemente, à filosofia. Vale dizer que a experiência da negatividade é um momento do processo dialético que leva o homem a filosofar. Desta dialética, o primeiro momento é constituído pela afirmação dogmática de mundo; o segundo é a experiència da negatividade; e o terceiro é o ato de assumir a filosofia como tarefa. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 77 | [ A RUPTURA DA DOGMATICIDADE E A EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Processo ascensional da consciência:
Em sua obra fundamental, a Fenomenologia do Espírito, Hegel nos descreve as etapas progressivas deste processo ascensional: o que vai fazer passar de uma etapa da existência para o imediatamente superior é justamente a consciência da contradição anterior a cada etapa, que vai exigir a sua superação até atingir o saber absoluto, a plenitude da identidade, e, conseqüentemente, a suspensão de toda contradição. Isto implica em dizer que o processo ascensional da consciência se realiza através da experiência da negação que deve ser constantemente superada; de negação em negação o homem atinge a sabedoria. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 78 | [ A RUPTURA DA DOGMATICIDADE E A EXPERIÊNCIA NEGATIVA ]
Trata-se de saber qual é o sentido e a extensão da experiência negativa em um plano puramente existencial. Se o homem vive, inicialmente, dentro de uma postura dogmática, em certa altura de sua existência ele sofre ou é agredido pela experîência negativa. Poderá escamotear esta experiência, recaindo, até certo ponto ao menos, em um mundo dogmático ou que se pretenda tal. Mas o fato subsiste: a experiência negativa não pode ser ludibriada, e seu reconhecimento adquire mesmo, para a instauração da postura filosófica, uma importância fundamental. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 81 | [ EXTENSÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ]
A experiência negativa pode processar-se dentro de duas posturas básicas. Numa, o indivíduo se entrega a um comportamento passivo, limitando-se a assistir ao que lhe acontece. Esta passividade, por sua vez, pode-se dar em um plano intelectual ou em um plano existencial. Na outra postura, o indivíduo acede a um comportamento ativo, fazendo da negação o objeto de sua conquista. Aqui também, esta conquista pode processar-se dentro de uma modalidade tanto intelectual, como existencial. Obviamente, esta classificação não pretende uma divisão em compartimentos estanques; trata-se muito mais de predominância de sentido passivo ou ativo, existencial ou intelectual. Passemos à análise destas quatro posturas.
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GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 82 | [ EXTENSÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Postura Passiva Intelectual
A experiência negativa apresenta-se como passividade intelectual na consciência da própria ignorância. Não se trata da ignorância em si mesma, mas da ignorância que se sabe ignorante. Esta experiência consiste, portanto, em não reconhecer a realidade, em viver dentro de uma realidade que lhe permanece alheia, estranha. Quando um homem toma consciência deste estranho da realidade, rompe-se, em certa medida, a sua postura dogmática, pois esta tomada de consciência provoca um sentimento de separação, de isolamento. Encontramos aqui uma modalidade de experiência negativa, porque o sentido do real – das coisas ou de mim mesmo – como que se esfuma, dando origem a um sentimento de perda de si dentro da realidade. O homem não sabe ou apenas sabe que é ignorante. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 84 | [ EXTENSÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Postura Ativa Intelectual
Na experiência da ignorância o homem se descobre fundamentalmente passivo, no sentido de que a sofre, podendo ou não reagir contra ela. Mas existe uma modalidade de experiência negativa intelectual que é ativa: a dúvida. A dúvida se processa com uma intensidade variável, atingindo o seu máximo de possibilidade no ceticismo. Górgias, que pode ser tomado como exemplo de exarcebação do processo da dúvida, reduz, como se sabe, a sua doutrina em três suposições: a) nada é; Neste exemplo extremo de dúvida, a negatividade atinge seu absoluto, incidindo em niilismo. Esta negatividade absoluta se caracteriza pela ruptura total com toda e qualquer modalidade de comportamento dogmático. O homem está absolutamente separado de tudo e de todos, e mesmo se alguma forma de conhecimento fosse possível, revelar-se-ia absurda, dada a impossibilidade de comunicá-la aos outros. Se na experiência da ignorância o mundo se torna estranho e enigmático, no ceticismo, ao contrário, ele simplesmente perde sentido. A tese geral se dissolve e o homem é reduzido ao homem, que por sua vez também é resumido ao silêncio total. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 87 | [ EXTENSÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Postura Passiva Existencial
A experiência negativa pode dar-se num comportamento de passividade existencial, na qual o sentido da realidade se esvai como que a despeito do homem, independentemente de seu querer: ele sofre a perda do mundo. Verifica-se uma espécie de “passio”, na qual o indivíduo se torna apático e até mesmo abúlico com uma intensidade maior ou menor. Todo o comportamento do homem tende a perder a sua razão de ser, e a sua atividade torna-se absurda na medida em que a realidade perde o sentido. Qual a causa – próxima ao menos – deste estado de prostração existencial ? Em certos casos ela pode ser reconhecida. Um estado de desespero é provocado, por exemplo, por uma doença grave ou incurável ou pelo descontrole que pode acompanhar a perda de um ente querido: a saúde ou a pessoa amada davam à existência uma dimensão que ela agora veio a perder. A própria consciência da morte ou, simplesmente, da brutalidade da condição humana podem estar na raiz de um comportamento de recusa, de desilusão ou de um conformismo que esconde a face do desespero. Outras vezes, a causa deste estado negativo não chega a ser tão claramente reconhecida, e a lucidez é substituída pela vivência da agressividade sofrida, por um sentir-se roubado em sua razão de ser, cujas raízes escapam à consciência. De qualquer maneira, o negativo avassala o homem independentemente de sua vontade. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 91 | [ EXTENSÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Postura Passiva Existencial
O importante a observar em experiências como a da náusea ou da angústia é precisamente esta perda de sentido do real, que faz com queo próprio homem sofra como que uma diminuição, destruindo a tese geral da existência dogmática. O sentido de familiaridade é substituído pela experiência da separação, da ruptura. A angústia e a náusea são sofridas pelo homem a despeito de si, pois o homem prefere o mundo em que vive, e por isto estas experiências se tornam insuportáveis. No mais, o homem não pode controlá-las, ou pode somente em parte. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 94 | [ EXTENSÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Postura Ativa Existencial
Há ainda outra modalidade de experiência negativa, também existencial, na qual nós encontramos um homem, não dominado e passivo, mas ativo e lúcido: trata-se do homem revoltado. Realmente, o homem revoltado não sofre apenas a perda do mundo; porém, muito mais, ele não quer o mundo, recusa-o, revolta-se contra o mundo, combate-o. O comportamento, neste caso, não se reduz somente a um sentir-se isolado, mas a um querer-se isolado, uma espécie de teimosia na separação, que implica, em última análise, numa vontade de destruição, de nadificar e de ser nadificado. … Mas há outro tipo de homem revoltado, digamos mais responsável e com uma dimensão mais acentuadamente moral. Se o esteta da negação é uma espécie de flor negra do absurdo, aqui, ao contrário, deparamos com uma consciência que se mede e se confronta com o absurdo, fazendo-o objeto de seu protesto. … A consciência do homem revoltado supõe o mesmo processo básico das demais experiências negativas já descritas. O homem vive em um mundo feito, suficiente em sua organização e fundamentalmente adaptado a ela, até que um dia se ergue o “por quê?”, donde pode decorrer um sentimento de dissonância com este mundo, a vivência de uma ruptura, a rebeldia que traz como conseqüência o isolamento, a separação, e até mesmo a experiência do absurdo, da perda de sentido da realidade. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 97 | [ SIGNIFICADO E SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] Introdução
O que constitui, em sua essência, a experiência negativa ? Poderíamos responder, simplesmente, com uma palavra: a separação. Mas o que deve entender-se aqui por separação ? Podemos dizer que a separação pertence à própria consciência, mas não de maneira acidental ou secundária. A separação ou a distância é o que caracteriza fundamentalmente a consciência, é o ser da consciência. Se isto é assim, porém, não conseguimos explicar, apenas pela separação, a experiência negativa; pois, como já vimos em um capítulo anterior, a consciência, e conseqüentemente a separação, já está presente no comportamento do homem dogmático. De fato, enquanto homem dogmático, eu aceito, ingenuamente, o mundo como sendo o outro que não eu, como uma realidade que me transcende, como aquilo que está separado de mim e do qual eu tenho consciência. Mas, justamente, há consciência e consciência, separação e separação. A idéia de separação não é suficiente para caracterizar a consciência, devendo-se-lhe acrescentar um segundo momento não menos essencial: a relação. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 98 | [ SIGNIFICADO E SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ]
Vimos como, através da experiência negativa, esta ingenuidade dogmática, por diversos caminhos possíveis, conhece a sua destruição; e o comportamento, de dogmático, passa a ser crítico, entre em crise. Da consciência espontânea, se passa a uma consciência cindida, interrompendo-se a sua adesão ao mundo dos objetos. Com isto, o seu aspecto de relacionamento com o mundo se enfraquece, pois na medida em que o mundo perde sentido ou vigor, nesta mesma medida o seu sentido de relação se desvirtua: na medida em que o mundo é vivido como negativo, a própria relação com o mundo também se torna negativa. E na medida em que a relação se torna negativa, acentua-se a consciência ou a vivência da separação. Vale dizer que a separação, antes da experiência negatica, não se sabia como separação, no sentido de que não chegava a constituir um problema para si própria. Agora, ao contrário, ela se transforma num problema. Através da experiência negativa, portanto, o homem toma consciência, com intensidade maior ou menor, da separação, do ser-distanciado que é próprio da consciência, perdendo-se outro aspecto constitutivo da consciência, isto é, a relação. … Através da experiência negativa conserva-se o caráter de distância próprio da consciência, mas, isolando-se, perde o seu caráter de relação. A consciência passa a ser apenas separação. Se a consciência já não se pode mais conectar com a realidade, é porque esta esconde o seu sentido ou perde o seu sentido, radicando nisto o drama da consciência negativa. Se nada pode subsistir por si, se toda realidade supõe e exige participação, esta participação, radicada na contingência, vale também para o homem. Todavia, nele a participação se complica, pois o homem não vive apenas, mas sabe que vive, isto é, pode dispor de seu modo de viver. E se nesta distância se radica a grandeza do homem, tal grandeza constitui também seu perigo, pois nela se radica a perene ameaça de uma queda, de uma ruptura, que torna o homem um ser problemático e faz de sua existência a imposição de uma conquista. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 100 | [ SIGNIFICADO E SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – NIILISMO
De fato, a negatividade constitui uma, entre outras, das modalidades da experiência humana. Se tudo é contingente, não se poderia pretender ver na experiência negativa um absoluto, nem mesmo seria lícito considerar a própria contingência como absoluta. Mas este é precisamente o problema que devemos enfrentar a seguir. E, para enfrentá-lo, o melhor é levá-lo, em um primeiro momento, às suas últimas consequências: o niilismo. Por niilismo devemos entender uma posição que pretende fazer da experiência negativa um absoluto, reduzindo o homem a um processo de isolamento total, dobrando-o completamente sobre si próprio. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 104 | [ SIGNIFICADO E SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – NIILISMO
A experiência niilista pode ser compreendida e, em certo sentido, até mesmo justificada. Quem sofre a experiência negativa, pode, dependendo da intensidade desta experiência, ficar de tal maneira emaranhado nela, que todo horizonte maior, toda possibilidade de transcendê-la é como que perdida de vista. Neste caso a esperança perde o seu sentido, podendo-se compreender um possível desespero, até mesmo radical. E, se isto já é válido para o niilismo existencial, sofrido, pode-se dizer que toda e qualquer modalidade de niilismo repousa sobre um desconhecimento, uma incompreensão do sentido profundo da experiência negativa. Não se pode ou não se quer compreender este sentido. E com razão adverte Gabriel Marcel: “A partir do momento em que o homem busca se colocar como um absoluto, ou melhor, libertar-se de toda relação, de toda referência a um outro que não ele mesmo, ele só pode, em última análise, se destruir, ou então – o que, de resto, redunda no mesmo – desembocar em uma idolatria que toma por objeto uma abstração, tal como a classe ou raça, isto é, algo de incomparavelmente inferior àquilo de que se pretendia libertar”. Mas quem está fora da experiência negativa, quem a sobrepujou ou quem a observa em seu desdobramento completo, pode compreender que esta experiência se enquadra em um todo maior, e só a partir desse todo maior adquire a negatividade seu significado pleno, dando a ela uma dimensão positiva. Podemos dizer que esse todo maior dentro do qual acontece a experiência negativa é constituído, de um lado, por um momento que a antecede, e, de outro, por um momento que a sucede. Só a partir destes dois momentos tem sentido, não só viver a negatividade, mas também descobrir o seu significado. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 108 | [ SIGNIFICADO E SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ]
Se através da experiência negativa se verifica uma perda de mundo, esta mesma experiência possibilita a abertura do horizonte para uma reconquista do mundo. Tal reconquista, por sua vez, só é possível na medida em que ultrapassar a experiência da negatividade, vencendo o egocentrismo que constitui a sua alma. Pois o característico da experiência da negatividade é tornar o homem prisioneiro de seu próprio inferno, limitando-o à sua particularidade. E o único caminho para vencer essa prisão radica-se num ato de conversão espiritual, numa autêntica metanóia, no sentido de estabelecer-se uma abertura para a realidade, superadora de toda experiência negativa, descentralizadora do egocentrismo. Na postura dogmática, o homem não assume realmente o mundo; mais propriamente, o mundo foi, desde sempre, assumido. E se o homem o perde através da experiência negativa, esta mesma experiência vai condicionar a reassunção do mundo. A partir deste ato de reassumir a realidade pode-se compreender a dimensão positiva que esconde toda experiência negativa. Pois tal dimensão positiva reside justamente na experiência do despertar do homem para a sua própria humanidade, para a sua realidade espiritual, bem como para o mundo, que passa a ser visto com novos olhos. Em outras palavras, através da experiência negativa o homem é chamado à sua plena responsabilidade; passa a sentir-se responsável pela realidade, no sentido de que compreende a necessidade de assumi-la. E a partir desta conversão, e só dela, compreende-se que um homem possa impor-se a uma nova tarefa: a Filosofia. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 110 | [ SIGNIFICADO E SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGATIVA ] – Comportamento Inicial do Filosofar
Se isto assim é, podemos compreender o comportamento inicial do filosofar, como aliás já acentuamos, dentro de uma perspectiva dialética. Sua primeira etapa consistiria na afirmação dogmática da realidade; em um segundo momento, encontramos a negação da afirmação da primeira, retraindo-se o homem pela experiência negativa; e, finalmente, o processo de negação da negação, isto é, a conversão reafirmadora da realidade. Se se pode falar em um processo dialético isto se deve ao fato de que estes três momentos não podem ser compreendidos isoladamento como pequenos absolutos exteriores a um itinerário, mas como algo dinâmico, um processo ascensional, no qual cada etapa traz em seu seio as experiências anteriores, resolvendo-as dentro de uma nova dimensão. Dentro desta problemática, o paradoxo da situação humana reside no fato de que o homem para poder entrar realmente no mundo precisa primeiro sair dele. Mas este sair – a experiência negativa – torna a existência humana impossível, condicionando assim, a volta do homem ao seu mundo, e isto não como algo arbitrário, mas como necessidade. “A separação é a fonte da necessidade da filosofia”, diz Hegel. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 112 | [ A CONVERSÃO FILOSÓFICA ]
O filósofo não se decide a fazer filosofia como um turista, e naquela resolução assumida por Spinoza há um compromisso pessoal da inteireza de sua existência, podendo-se, por isto, falar em uma metanóia. Compreende-se assim que a Filosofia não possa ser reduzida a um exercício intelectual, a um jogo exterior à existência concreta ou que apenas atendesse aos dotes especialmente talentosos de uma determinada pessoa. O homem faz filosofia tão-só a partir desta resolução profunda, vertical, que o agarra todo e o compromete todo. Se isto é correto, devemos afirmar que a filosofia não se faz a partir da exterioridade, ou de um comportamento exterior, abstrato, mas a partir da interioridade. Ora, interioridade quer dizer liberdade, e com isto tocamos no próprio nervo daquele ato de assumir. Como deve ser compreendida esta liberdade que funda a resolução filosófica ? |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 122 | [ A CONVERSÃO FILOSÓFICA ]
Aqui podemos perceber, portanto, a importância que assume para a filosofia o comportamento admirativo. No consentimento filosófico encontramos aquelas mesmas características apontadas por nós na análise da admiração ingênua. Aqui também há uma afirmação do real, entendida como disponibilidade pura; há a presença da consciência, incompatível com qualquer processo de diluição, com qualquer modalidade de “nirvana”; e há o despertar do espírito que se revela como desejo de enfrentar o real, como liberdade que se reconhece a si própria no consentimento. Neste sentido, podemos falar em uma admiração filosófica, porquanto o ato de consentimento traz em si todas as características da admiração, despida, agora, de sua ingenuidade inicial. … Convém acenar, por um momento, para o que nos parece ser a principal dificuldade no acesso à postura filosófica. Normalmente o homem não permanece fiel a este comportamento de abertura, normalmente ele o falsifica. E isto pode ser compreendido: o humano, demasiado humano, é reduzir-se a uma dimensão pragmática, isto é, à vida de todos os dias, com as suas inadiáveis exigências. Mas a partir desta pragmaticidade, desta dimensão de historiedade e de suas imposições urgentes, corre-se o perigo, não só de adotar um comportamento incompatível com as exigências do comportamento filosófico, mas também o de incorrer em uma falsificação da própria filosofia. Este perigo deriva de um comportamento funcionalizados do real. Não que este comportamento não tenha as suas razões de ser, mas ele representa o antifilosófico por excelência, pois substitui a necessidade de permanecer disposto, pelas exigências utilitárias. Quando esta mentalidade funcionalizadora penetra no comportamento filosófico, o resultado é a falsificação da tarefa filosófica. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 123 | [ A CONVERSÃO FILOSÓFICA ]
Tanto no pragmatismo como no idealismo encontramos processos de retraimento do homem sobre si próprio. Pode-se falar em uma falsificação no setido de que a experiência negativa não chega a ser transcendida. Ambas estas modalidades de funcionalização do real implicam numa subordinação das coisas ao homem, e este, ao invés de aceder àquilo que o transcende, afasta-se sempre mais, fechando-se ao real. O sentido de disponibilidade é solapado em sua própria raiz. Para tornarmos o nosso problema da atitude inicial do filosofar mais preciso, devemos perguntar, mas uma vez, em que sentido esta atitude transcende a dogmaticidade. A admiração ingênua aceita o real, e o que a caracteriza é um comprazer-se não problematizado nesta aceitação: donde o seu radical dogmatismo. Na atitude inicial do filosofar há, ao contrário, um sentimento de responsabilidade na minha afirmação do real. Com isto, o sentido da verdade impõe-se ao homem dentro de uma nova exigência. Esta exigência radica na disponibilidade a um consentimento puro ao que de fato é o real, está endereçada a uma compreensão do real, livre de todo e qualquer pressuposto, de todo e qualquer pré-conceito. A tese geral move-se, fundamentalmente, dentro de pré-conceitos, no sentido de que aceita a realidade como algo já resolvido, como verdade já feita. Para a consciência filosófica surge, bem ao contrário, um novo sentido de verdade, radicado num comportamento que abdica do pré-conceito, da “palavra própria, para ouvir só a voz das coisas”. Surge, portanto, o sentido da necessidade de um autêntico dispor-se ao real, de um permanecer disposto de tal forma que o real se possa mostrar tal como é, naquilo que é. Este saber permanecer aberto à densidade do real coroa aquele sentido de liberdade entendida como consentimento, como dom de si. Todo o sucesso do conhecimento filosófico vai depender da fidelidade dste ato de abertura, de disponibilidade ao real; e longe de contrapor-se à liberdade, implica em sua realização. A necessidade deste comportamento de abertura deriva de um sentido de respeito ao real que o sabe escondido, encoberto. Mas este estar-escondido não pode ser compreendido como uma inacessibilidade absoluta, qualquer coisa que tornaria inútil todo o esforço filosófico. Por outro lado, contudo, a realidade não se confunde com uma mostração total, com uma espécie de vitrina ou mostruário do qual o homem possa simplesmente lançar mão. Muito mais, a realidade é vivida dentro de uma atmosfera crepuscular, como um claro-escuro, um encoberto-descoberto, que dá a sua razão de ser ao ato cognoscitivo. As coisas estão descobertas em sua dimensão de encobertas. É a partir da compreensão desta zona intermediária – igualmente distante de um encobrimento ininteligível como de uma transparência absoluta -, é a partir desta região bidirecional, deste habitar em dois reinos, que se pode falar no sentido do mistério. O devassado e o não-devassado como que se entrosam, fundando assim a vocação do inteligir. Neste sentido podemos dizer que o real permanece indevassado para o homem, pois por mais que a inteligência humana consiga penetrá-lo, por mais que consiga dizê-lo, continuará o real impondo-se como mistério. Sentido do mistério não é nada mais do que o sentido de admiração pelo real, fidelidade ao ato de conversão, de postura em atitude aberta. Esta admiração, porém, não é tão-somente um impulso inicial, qualquer coisa como um princípio anterior ao desenvolvimento propriamente dito do pensamento fislosófico; muito mais, ela deve ser entendida como a base genética de um corresponder ao real; pois, em verdade, a admiração está na origem e preside todo o desdobramento da atividade filosófica. A admiração dá origem à filosofia e acompanha todo o filosofar. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 127 | [ A CONVERSÃO FILOSÓFICA ]
Compreende-se, portanto, que a conversão filosófica transcenda todo o próprio da experiência negativa, isto é, o egocentrismo e o concomitante sentimento de separação. Através da conversão, o homem volta a relacionar-se com o real. Esta relação, contudo, já não se pode verificar dentro dos moldes da postura dogmática, da pura e simples apropriação do real. Na experiência negativa o sentido do real se perde ou torna-se vacilante, razão pela qual o homem não pode mais habitar simplesmente este real com a ingenuidade do primeiro dia. Tudo deve ser reconquistado, e esta exigência de reconquista vai determinar o novo sentido, próprio do filósofo, de relacionar-se com o real: o sentido crítico, problematizador, que distingue a pergunta filosófica. No ato de perguntar condensa-se o espírito crítico do filósofo. E se indagarmos onde nasce este espírito crítico, devemos responder que nasce da experiência negativa, porque através dela o sentido do real me escapa. … Devemos então dizer que o espírito crítico encontra sua razão de ser não apenas na negação, mas na negação da negação, quer dizer, na necessidade de reafirmação do real. E de um real ao qual o filósofo deve permanecer aberto, nutrido do sentido do mistério. Podemos, assim, afirmar que o espírito crítico traz em seus lábios tanto o fel da negatividade quanto o sabor do desvelamento do real. Se, de um ponto de vista genético, mergulha na experiência negativa, o que lhe dá uma dimensão filosófica, porém, é o permanecer disponível ao mistério do real. Neste sentido, pode-se compreender a passagem da indiferença ontológica para a problemática da diferença ontológica, isto é, todo o comportamento que faz o homem transcender a sua dogmaticidade relativa ao fundamental. … O espírito crítico é, pois, fundamentalmente, pergunta, e qualquer que seja a sua origem, a pergunta filosófica move-se sempre dentro de um profundo sentido afirmativo. A pergunta é a maneira de o filósofo permanecer aberto ao mistério. |
GERD A. BORNHEIM | Introdução ao Filosofar – O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais | 129 | [ A CONVERSÃO FILOSÓFICA ]
Pois todo saber é um presente que se conquista na paciência, isto é, um presente que encontra sua raiz na presença, no ser presente. |
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