Sobre por que podemos estar agindo de forma errada segundo nosso próprio entendimento
Diálogos – Parte III
Ubíracles: Grande Brunófeles! Como vais? Estais à conseguir se resguardar a fim de escapar desta tão temível pandemia que assola à todos?
Brunófeles: Meu estimado mestre Ubíracles! Gratificado em poder ouvir-te. Sabes que estou com facilidade em resguardar-me desta pandemia, aliás ela não parece mais temível do que a vida sempre eis de ser.
Ubíracles: Pois bem nobre colega pensador… Tenho uma novidade, porém não sei se boa ou ruim!!! Não sei se ficastes sabendo, mas vazaram os áudios de nosso último diálogo na internet! Creio que seja ruim por expor nossos pensamentos ao mundo de forma desenfreada e sem controle, porém boa por que acredito que nos incita a finalizarmos, urgentemente, o ponto em que paramos em nosso último diálogo. O que achas? Qual sua disposição para tal?
Brunófeles: Sabes amigo, creio ser uma boa noticia, tendo em vista que, nada melhor para passar esses tempos de isolamento do que com boas reflexões sobre nossos comportamentos com os demais terráqueos. Portando, acho uma excelente ideia continuarmos a buscar respostas sobre nossos comportamentos e assim poder trazer mais pontos de reflexão para as belíssimas pessoas que estão a nos acompanhar na busca por esclarecer nossas angustias.
Ubíracles: Pois bem prezado amigo, creio que, como de costume, devemos primeiramente relembrar a premissa sobre qual iremos aprofundar nossos pensamentos, correto? Nesse caso, se não me falha a memória, estamos preocupados agora em compreender as pessoas que têm consciência de estarem agindo de forma errada em relação ao seu próprio entendimento mas, ainda assim, perpetuam no erro. Estou correto?
Para facilitar nossa compreensão, podemos citar o exemplo de Temistocléia, com quem conversei há pouco tempo. Temistocléia, por compaixão, não consegue matar com as próprias mãos os animais que normalmente lhe servem como alimento. Quando a alertei à respeito de que não existe diferença se o animal foi morto pelas próprias mãos ou pelas mãos de outra pessoa, Temistocléia passa a ter consciência de seus atos – a consciência de estar agindo de forma errada em relação ao seu próprio entendimento. O sentimento de compaixão que Temistocléia sente pelos animais passa a conflitar com a descoberta de que, embora não esteja matando os animais com as próprias mãos para deles servir-se, está o fazendo indiretamente, no momento em que adquire a carne de animais que foram mortos pelas mãos de outra pessoa e que, dessa forma, mesmo que indiretamente, Temistocléia continua com sangue da culpa em suas mãos. Apesar de tomar consciência de tal conflito, entretanto, Temistocléia continua agindo de forma errada em relação ao seu próprio entendimento, qual seja, se alimentar de animais dos quais ela, por sentimento aos mesmos, não consegue sacrificá-los com as próprias mãos.
Seria esse um exemplo correto dos pensamentos que desejamos aprofundar caro discípulo Brunófeles?
Brunófeles: Como de costume, usastes de sábias palavras para descrever este belo acontecimento ocorrido em sua vida estimado mestre. Creio ser este um exemplo de excelência para continuarmos a nossa busca por respostas.
Ubíracles: Pois bem caro Brunófeles… tomando como exemplo o caso da nossa amiga Temistocléia… entendo que tudo começa a ocorrer a partir da tomada de consciência, não achas? Neste caso, se Temistocléia concorda com a afirmação de que o mandante de um assassinato também deve ser julgado e também condenado a pagar pela mesma pena do assassino, podemos dizer que Temistocléia, queira ou não, está efetivamente agindo de forma errada em relação ao seu entendimento, não concordas?
Brunófeles: Sim Ubíracles, toda a reflexão pessoal começa com a tomada de consciência sobre o ato. E sobre a segunda pergunta, se bem entendo Temistocléia concorda que o mandante de um assassinato também é culpado, logo, sendo ela a mandante de tal também se considera culpada, mesmo alegando firmemente que não conseguiria matar determinado animal para se alimentar, estou certo disso mestre?
Ubíracles: Pois então caro Brunófeles, só tenho certa dúvida se podemos afirmar que ela se considera culpada, me soa à princípio, como uma inferência de nossa parte. Lembras de que no diálogo anterior evitaríamos determinar os motivos internos que leva uma pessoa à determinada ação devido à sua natureza subjetiva? Mas fora esse detalhe, quanto ao restante me parece que é exatamente isso mesmo estimado discípulo.
Dessa forma, gostaria de propor agora um outro cenário através do qual eu gostaria de analisar a questão. Vamos imaginar que Temistocléia tem mania por limpeza. Ou seja, manter sua casa limpa para ela é algo de extrema importância e que ela faz questão de executar as tarefas com suas próprias mãos para que, assim, o resultado seja à altura da exigência que ela mesma se impõe. Alguma dúvida em relação à esse exemplo estimado Brunófeles?
Brunófeles: Nenhuma dúvida amigo, continue…
Ubíracles: Pois então caro amigo… Penses que por algum motivo uma amiga de Temistocléia, ao visitá-la, tenha sujado o chão de sua sala. Frente à isso caro Brunófeles, pensas assim como eu que, Temistocléia, que preza com avidez pela limpeza de seus aposentos, poderia ficar indiferente à sujeira presente no chão de sua sala?
Brunófeles: Claro que não ficaria indiferente com tal situação, com quase certeza poderíamos dizer que ela limparia de imediato e com suas próprias mãos o lugar sujo.
Ubíracles: Provavelmente caro Brunófeles… entretanto caro pensador, frente qualquer dificuldade que Temistocléia possa apresentar em limpar a sujeira com suas próprias mãos – nas condições em que esta desejaria que fosse feito – poderia esta por sua vez a buscar quaisquer outras soluções que possam lhe restaurar mais rapidamente a sensação de limpeza que a mesma possuía antes de sua amiga sujar o chão da sala? Como por exemplo, varrer a sujeira para baixo do tapete?
Brunófeles: Pois bem mestre, creio que Temistocléia não conseguiria varrer essa sujeira para baixo do tapete, pois o que percebemos é que ela preza pela limpeza do ambiente e não apenas em ver a sujeira. Mas me pergunto, e se a amiga de Temistocléia tivesse rapidamente após sujar, escondido a sujeira de baixo do tapete? Poderíamos dizer que Temistocléia não sentiria a necessidade de limpar imediatamente a sujeira, pois ela não estaria vendo, entretanto encontraria essa sujeira quando estivesse limpando por completo o ambiente e visualizando a sujeira imediatamente realizaria a limpeza.
Ubíracles: Bem observado Brunófeles… mas caso Temistocléia preze pela limpeza de seus ambientes, porém fosse o caso de não fazer diretamente a limpeza, diferente de como abordei inicialmente o exemplo, mas dependa de alguém para fazê-lo. Neste caso, na indisponibilidade desta pessoa em limpar a sujeira para Temistocléia, acharia plausível que a mesma, a fim de fazer sumir à sujeira de sua vista, resolvesse varre-la para debaixo do tapete? Ou seja, que existam situações onde as pessoas optam por adotar soluções que apenas aparentemente, porém não efetivamente, resolvem o problema? E que pelo fato do problema estar aparentemente solucionado, é possível que dele venham à esquecê-lo?
Brunófeles: Sim, me parece que quando o problema está oculto fica muito mais fácil de esquece-lo, pois precisamos procurá-lo, ou seja, ele não está facilmente ao alcance de nossa visão.
Me parece que queres trazer uma grande descoberta por meio desse exemplo caro Ubíracles, confesso que estou ansioso para refletir sobre tal problemática. Então caro mestre ilumine nossos pensamentos…
Ubíracles: Pois bem caro Brunófeles… para entender por que as pessoas, mesmo tendo consciência de estarem agindo errado em relação ao seu próprio entendimento e, ainda assim perpetuarem no erro, percebo ser necessário novamente abster-nos de julgar os motivos internos pelos quais as pessoas fazem o que fazem, devido, principalmente, à amplitude subjetiva que tal análise requisitaria como já havíamos concluído anteriormente, concordas?
Pois assim, penso que para não perpetuar à agir de forma errada em relação ao seu próprio entendimento é necessário que, inevitávelmente, ocorra uma mudança em que ou a pessoa muda seu entendimento ou muda suas ações divergentes à ele, concordas também com essa afirmação Brunófeles?
Brunófeles: Pois então, concordo com tais premissas velho amigo.
Ubíracles: Desta forma caro Brunófeles, meus pensamentos me levam a concluir que, sem que seja necessário fazer qualquer julgamento de valor sobre os motivos internos pelas quais uma pessoa perpetua a agir de forma errada em relação ao seu entendimento, elas o fazem basicamente em função da relação entre o esforço necessário e os recursos disponíveis para que esta pessoa consiga mudar suas ações, a vontade desta pessoa perseverar em seu entendimento, e o incômodo (ou desconforto) que esta pessoa passou a sentir ao tomar consciência de estar agindo de forma errada em relação ao seu entendimento.
Pois assim caro Brunófeles, diria que quando o esforço se equipara ou é inferior aos recursos disponíveis, não há motivos para a pessoa deixar de exercer sua vontade em fazer prevalecer seu entendimento, provocando assim, uma mudança nas suas ações conflitantes. Diria que este seria o caso de Temistocléia, como bem dissestes, que possivelmente limparia a sujeira imediatamente com as próprias mãos.
Por outro lado, quando o esforço necessário supera o recurso disponível, não vejo como ser possível qualquer mudança. Nesta condição, será preciso comparar também o esforço necessário com a vontade da pessoa em perserverar em seu entendimento. Enquanto este for inferior, a pessoa irá perserverar, buscando alternativas para reduzir o esforço a tal ponto que este se equipare ou se torne inferior aos recursos disponíveis. Diria que este seria o caso de Temistocléia, quando esta, com as unhas recém pintadas, vir-se-á na impossibilidade de limpar a sujeira com suas próprias mãos como desejaria, porém adotando a solução de chamar seu marido para que este proceda a limpeza (solução que para ela ainda é longe de ser a ideal!).
Entrentanto, quando o esforço necessário é maior recursos disponíveis, e também maior que a vontade da pessoa em perseverar em seu entendimento, a única alternativa que resta à esta pessoa é buscar soluções outras que não à de limpar a sujeira mas que, aparentemente, eliminaria o incômodo. Diria que este seria o caso de Temistocléia quando esta, com as unhas recém pintadas e sozinha em sua casa, não encontra recursos para limpar a sujeira como deveria, optando assim, por varrer a sujeira para debaixo do tapete para assim poder receber as visitas que aguarda.
Creio que assim estimado discípulo, diria que uma pessoa perpetua agindo de forma errada em relação ao seu entendimento quando sua vontade de perseverar seu entendimento é inferior ao esforço necessário para mudar suas ações. Esta pessoa, no caso, a fim de livrar-se do incômodo causado pela tomada de consciência de estar agindo de forma errada, adotará quaisquer outras soluções paliativas, mas que não irão resolver o problema – mas somente disfarçá-lo ou camuflá-lo – devolvendo à esta pessoa a falsa sensação de não mais estar agindo errado em relação ao seu entendimento.
Outra atitude possível, creio, é que a partir da reflexão uma pessoa possa ampliar sua vontade de perserverar em seu entendimento. Diria que este seria o meu caso quando, ao tomar conhecimento por meio do prezado amigo no que se refere à descoberta da sensciência dos animais, vi-me obrigado a refletir meus pensamentos e sentimentos, ampliando minha percepção de compaixão para com os animais e resultando no não-consumo de animais de sangue quente (o que já se trata de um avanço!).
Pois bem estimado… estou ávido para que meus argumentos saciem sua angústia, pois percebo que sem recorrer à qualquer espécie de julgamento em relação à qualquer pessoa podemos – e creio ser este nosso papel enquanto filósofos – auxiliar na ampliação da vontade da pessoa em perseverar em seu entendimento, uma vez que, caberá somente à esta a responsabilidade buscar meios de minimizar os esforços requeridos e maximizar os recursos disponíveis para assim facilitar a mudança de suas ações.
Brunófeles: Sabes mestre, quando escuto suas reflexões, essas clareiam o meu pensar, me permitindo ir ainda mais além do que sozinho meus pensamentos me levariam. Quando dizes que “a fim de livrar-se do incômodo causado pela tomada de consciência de estar agindo de forma errada, adotará quaisquer outras soluções paliativas, mas que não irão resolver o problema – mas somente disfarçá-lo ou camuflá-lo – devolvendo à esta pessoa a falsa sensação de não mais estar agindo errado em relação ao seu entendimento”, isso me traz a luz da razão quando falamos de “abate humanitário”, que é uma ilusão criada para que justamente tenhamos a sensação de que estamos matando um animal sem lhe causar sofrimento. Aliás, se fosse tão aceitável matar um animal, porque precisaríamos criar essa falsa premissa de “abate humanitário”? Sinto que esse tipo de termo é criado devido as descobertas reveladas pela ciência, pois entendendo que um animal sente dor e emoções próximas ou iguais as nossas como seguiríamos matando estes seres sem antes criar alguma justificativa que nos permita continuar não é mesmo.
Por isso caro amigo, me enche os pulmões de ar ao escutar seus pensamentos. Posso dizer agora que minhas angustias já não poderão ser as mesmas, pois me trouxe a tranquilidade de aceitar minhas escolhas com a devida meditação diante de minhas ações e capacidades por meio de meus entendimentos.
Lembra-te de nossa primeira conversa, me parecia que seria fácil conscientiza-lo de que é imoral comer outros animais, mas para a minha grande surpresa quem acabou sendo conscientizado fui eu, devido estar tão aprofundado em meus pensamentos sobre os direitos animais que não conseguia mais enxergar o todo, o que promove tal ato, ou seja, não podemos julgar olhando apenas por meio de uma premissa, como filósofos devemos nos distanciar deixando as emoções em descanso e priorizando a razão para que possamos ter uma reflexão mais ampla e complexa. Pois então, fico grato por tantos ensinamentos. Mas claro, não podemos esquecer de nossa segunda conversa, essa que iniciei como alguém que gostaria de entender os seus próprios pensamentos, e lembra-te de que conforme fostes iluminando o caminho para meu pensar acabou por iluminar também o seu entendimentos sobre o fato de comer animais caro mestre? Lembro-me de que usou um exemplo de maestria questionando não mais o ato de comer os animais, mas o ato de matar os mesmos, onde se perguntou se conseguiria matar determinados animais para se alimentar já com todo o conhecimento sobre a senciência dos mesmos. Assim, chegando a conclusão de que se não consigo matar, porque pago para que alguém os mate por mim, se meu nível de compaixão não me permite matá-lo porque ainda sigo matando-os pelas mãos de outrem, como bem me lembro falastes do mandante de um assassinato que mesmo sem matar com as próprias mãos não o inibe da culpa da morte. Foi nessa segunda conversa grande amigo que conseguimos juntos buscar premissas que não justificavam o nosso consumo e, que para a minha grande surpresa enquanto você buscava cessar minhas angústias para tais reflexões acabou por enxergar em ti possíveis mudanças pessoais diante de seu entendimento para com a alimentação de animais de sangue quente. E sabes, depois de duas conversas de concordâncias e discordâncias chegamos aqui, onde conseguimos unir nossos pensamentos em busca de uma possível premissa universal (acredito que conseguimos), que para nós foi uma grande vitória, a vitória da razão. Me orgulha saber que por meio de nossos próprios esforços conseguimos chegar a essa tão importante conclusão grande mestre e amigo.
Ainda posso dizer que nossos pensamentos se complementaram por um simples motivo, ambos buscam se entender melhor, pois principalmente para um filósofo dizer que se conhece completamente seria um exagero, diante de uma ferramenta tão potente e misteriosa como nosso cérebro.
Mas então mestre, gostaria de ouvir também como se sentistes após essas três conversas que tivemos, parece até que posso escutar nosso velho amigo Heráclido dizendo que já não somos os mesmos Brunófeles e Ubíracles.
Ubíracles: Pois bem estimado Brunófeles… confesso que agora me vejo com certa dificuldade para encontrar as palavras apropriadas para descrever o que me pedes, principalmente, após teres resumido com excelência nossa jornada desde o primeiro diálogo até aqui.
Me parece que foi como se estivéssemos perdidos em um floresta, onde você possuía uma parte de um mapa indicando o caminho para um determinado destino e, eu, com uma outra parte de um mapa, indicando outro. À medida que caminhávamos, cada um precisou não somente explicar sua parte do mapa ao outro, mas também compreendê-lo, pois nestes haviam partes não muito legíveis que ainda precisaram ser decifradas. Para isso caro discípulo, foi ainda mais importante o fato que ambos estarem pré-dispostos a compreender a parte do mapa do outro, que foi o que possibilitou que cada um pudesse decifrar as partes que faltavam de seu próprio mapa. Ainda assim caro Brunófeles, outra coisa extraordinária me parece que também tenha ocorrido: à medida em que íamos caminhando, compreendendo e decifrando ambos os mapas, fomos percebendo também que os mesmos também iam se conectando e se completando, formando aos poucos um mapa ainda maior e mais completo.
E então…. por estarmos focados muito mais em chegar à algum destino – seja qual fosse – do que propriamente cada um querer defender o seu mapa como certo, foi que percebemos, a partir da conexão que ia se formando entre os dois mapas, que um novo caminho ia tomando forma. Um novo caminho, porém sem destino. E assim cada diálogo se constituiu em um etapa desta caminhada: caminhávamos desbravando o caminho sem saber onde chegaríamos. Ao concluirmos uma etapa, olhávamos para trás e víamos o que aprendemos com o caminho percorrido, seguindo então para uma nova etapa e dispondo novamente, somente do caminho sem destino apontado pelo novo mapa. O mais incrível foi que, apesar da necessidade de chegarmos à algum destino para sair da floresta, confiamos em percorrer o caminho sem destino. Ao final, não chegamos nem no destino que seu mapa apontava e tão pouco no destino apontado pelo meu, mas sim à um novo destino que não somente agradou a ambos, mas que nos transformou enquanto compreendíamos e percorríamos o novo mapa com caminho sem destino.
E são experiências como essa caro discípulo, que por nos transformar em algo melhor do que éramos é que se tornam eternas!
Creio que Heráclito à essa altura gritaria: Caminhantes de um caminho sem destino!!!
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