Crítica ao conceito de identidade pessoal de Locke

O ENSAIO SOBRE O ENTENDIMENTO HUMANO – LIVRO II. CAPÍTULO 27

DA IDENTIDADE E DIVERSIDADE

“O Ensaio sobre o Entendimento Humano foi publicado pela primeira vez em 1690 (a rigor, em dezembro de 1689, mas datado de 1690), depois que Locke retornou do exílio na Holanda. O capítulo Da Identidade e Diversidade, no entanto, é um acréscimo posterior, feito na segunda edição, ocorrida em 1694.” (Locke, p.169)

Neste trabalho, faremos uma crítica ao conceito de identidade pessoal defendida por Locke neste capítulo. Para isso, primeiramente apresentaremos a construção dos conceitos ao longo do mesmo e, por último, uma crítica às ideias por ele defendidas.

1. Quanto às premissas para caracterização dos conceitos de identidade e diversidade das coisas:

As noções de identidade e diversidade surgem a partir da necessidade da mente em procurar determinar se uma coisa é a mesma coisa quando observada em outro tempo e/ou em outro lugar.

“Disso se segue que uma coisa não pode ter dois inícios de existência, nem duas coisas um único início,  sendo impossível para duas coisas da mesma espécie ser ou existir no mesmo instante no mesmíssimo lugar; ou uma e a mesma coisa, em diferentes lugares. Portanto, aquela que teve um início é a mesma coisa e a que teve um início diferente daquela no tempo e lugar não é a mesma, mas diversa” (Locke, p.170)

Aqui Locke determina como regra máxima a de que duas coisas de uma mesma espécie não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo como, também, determina que uma mesma coisa não pode estar em dois ou mais lugares ao mesmo tempo (embora não esteja explícito que é ao mesmo tempo).

Locke então conclui que, por esses argumentos, se reconhece a identidade de uma coisa a partir de seu início e, como diversa, qualquer outra coisa que tenha tido um início diferente – no tempo e no espaço.

2. Quanto ao conceito de substância de uma coisa:

Segundo Locke, só podemos ter ideias à respeito de três tipos de substâncias: Deus, Inteligências finitas e Corpos, tendo cada um seu determinado tempo e lugar de início da existência, a relação àquele tempo e lugar sempre determinará para cada um deles sua identidade, enquanto cada um existir.

Para Locke, a substância reconhecida por Deus não teve início, é eterna, inalterável e onipresente e que por esses motivos, não há dúvidas quanto à sua identidade.

As inteligências finitas, segundo Locke:

“Em segundo lugar, espíritos finitos, tendo tido cada um seu determinado tempo e lugar de início da existência, a relação àquele tempo e lugar sempre determinará para cada um deles sua identidade, enquanto cada um existir.” (Locke, p.170)

Neste momento, Locke parece acrescentar algo mais à sua definição inicial de identidade de uma coisa. Em relação à substância de Locke denomina “inteligências finitas” ou “espírito finitos”, conclui-se que este reconhece a possibilidade da existência de coisas composta de uma substância de natureza imaterial.

Para as coisas dotadas de inteligência, porém de natureza imaterial, Locke acrescenta que sua identidade está também condicionada à perpetuação de sua existência. Entende-se segundo Locke, que uma coisa que não é composta por matéria – de natureza imaterial – tem sua identidade limitada à duração de sua existência.

e Corpos:

“Em terceiro lugar, o mesmo se dará com toda partícula de matéria, que, não lhe sendo feita nenhuma adição ou subtração de matéria, permanece a mesma.” (Locke, p.170)

Já uma coisa formada por matéria, dito corpos, Locke acrescenta que a identidade de um corpo material está vinculada à permanência da matéria em seu estado original quando no momento do início de sua existência. Explica que, ainda que esta matéria se acrescente ou se reduza, ainda permanece a mesma.

Assim, em relação à premissa inicial definida no item 1, acrescenta-se que a identidade das substâncias – com exceção de Deus – está também condicionada à sua existência: na forma de matéria (corpos) ou imaterial (espíritos finitos).

Aqui no entanto, fica em aberto uma definição quanto à quando se reconhece o início da existência de um espírito finito ou, da mesma forma, quando se é possível reconhecer quando do término de sua existência. Em outras palavras, como se determinar quando um espírito nasce ou morre?

3. Quanto ao conceito do Principium individuationis:

Somando os conceitos até então vistos nos itens anteriores, a individualização, para Locke:

“é a própria existência que determina um ser de qualquer tipo a um tempo e lugar particulares, os quais não podem ser compartilhados por dois seres da mesma espécie.” (Locke, p.170)

Pode-se entender até aqui portanto, que é a existência de um ser no espaço-tempo que determinada sua identidade ou individualização e que esse ser, com exceção de Deus, pode ser natureza imaterial – espíritos finitos – ou material – corpos.

4. Quanto ao conceito de identidade dos vegetais e animais

Para Locke, a identidade reservada aos vegetais e animais, enquanto criaturas vivas e formadas por substância corpórea, é delimitada pela existência do organismo vivo em questão, desde o seu início, até o término de sua vida.

5. Quanto ao conceito de identidade do homem

Para Locke, a identidade do homem provêm da mesma substância das criaturas vivas. 

“Presumo que não é somente a ideia de ser pensante ou racional que constitui a ideia de homem na opinião da maioria das pessoas, mas a de um corpo com este ou aquele formato unido a ele; e, se essa for a ideia de homem, o mesmo corpo sucessivo, que não é alterado todo de uma vez, deve, assim como o mesmo espírito imaterial, contribuir para a constituição do mesmo homem.” (Locke, p.176)

Dessa forma, quando Locke trata da identidade do homem, está falando da identidade do homem enquanto unicamente substância corpórea, cuja identidade, é determinada da mesma maneira como para com as demais criaturas vivas: desde o início de sua vida – nascimento corpóreo – até o seu término – morte corpórea. Em outras palavras, a identidade do homem é determinada por sua existência física.

6. Quanto ao conceito de identidade pessoal

Para Locke, para entender em que se constitui a identidade pessoal é preciso primeiramente considerar o que é uma pessoa. Em suas palavras:

“Pessoa, penso eu, é um ser pensante inteligente que tem razão e reflexão e pode considerar a si mesmo como si mesmo [it self as it self], a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que é feito somente pela consciência, que é inseparável do pensamento e, como me parece, lhe é essencial: é impossível para qualquer um perceber sem perceber que percebe.” (Locke, p.176)

Aqui Locke define que uma pessoa é um ser pensante que se reconhece como si mesmo. Inicialmente Locke não define sua substância, mas pode-se afirmar entretanto que esse ser que pensa é uma substância não corpórea. Desta forma, a identidade pessoal não está relacionada à existência do seu corpo físico. Para Locke portanto, a identidade pessoal é algo que está associado unicamente à este ser pensante de natureza não-corpórea. Locke, portanto, faz uma dissociação entre corpo e a mente que pensa. Locke entretanto, não apresenta nenhum argumento, racional ou empírico que demonstre uma existência de um ser pensante que não seja por meio do corpo físico. Em outras palavras, o que é conhecido por todos é justamente o contrário: não se tem conhecimento da existência de um ser pensante que não seja por meio de sua existência corpórea.

O que permite segundo Locke, que a existência do ser pensante posso se reconhecer a si mesmo como si mesmo em diferentes tempos e lugares, é a consciência. A identidade pessoal e a existência do ser pensante, é portanto para Locke, determinada por sua consciência. Pode-se entender que consciência é a identidade pessoal que possibilita reconhecer um mesmo ser pensante em diferentes tempos e lugares. segundo Locke:

“Sendo a mesma consciência que faz um homem ser ele mesmo para ele mesmo [be himself to himself], a identidade pessoal depende somente disso, tanto se ela estiver vinculada somente a uma substância individual ou puder se manter numa sucessão de várias substâncias. Um ser inteligente é o mesmo eu pessoal [same personal self] tanto quanto puder repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência que teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de qualquer ação presente, pois é pela consciência que tem de seus pensamentos e ações presentes que ele é um eu para si mesmo agora [it is self to it self now] e, assim, será o mesmo eu [self] tanto quanto a mesma consciência puder se estender a ações passadas ou vindouras; e não seria, pela distância no tempo ou mudança de substância, duas pessoas mais do que um homem não é dois homens por vestir roupas diferentes hoje e ontem com  um sono longo ou curto no intervalo: a mesma consciência une essas ações distantes na mesma pessoa, quaisquer que tenham sido as substâncias que contribuíram para produzi-las”. (Locke, p.177)

Poder-se-a resumir desta forma, que a identidade pessoal de um ser pensante, não-corpóreo, é sua consciência de reconhecer a si mesmo como a si mesmo, independente do tempo e lugar em que isso ocorre. Locke usa a metáfora de que o ser pensante seria o homem e, suas roupas, seu corpo físico. Desta forma, por mais que o homem viesse a trocar as suas roupas ao longo do tempo, ainda assim seria o mesmo, pois independente da roupa conseguiria se reconhecer a si mesmo como a si mesmo. 

Em função disso, Locke argumenta em defesa da argumentação acima frente à determinadas circunstâncias passíveis de questionamento:

  • A identidade pessoal na mudança de substâncias
  • Quanto a mudança de substâncias pensantes

7. A identidade pessoal na mudança de substâncias

Em relação ao primeiro ponto Locke somente apresenta uma comprovação metafórica, em que a identidade pessoal poderia persistir em diferentes substâncias da mesma forma que continuamos sendo a mesma pessoa quando, por exemplo, tivéssemos uma parte do nosso corpo amputada. Quanto à esse ponto, a identidade pessoal é preservada, ainda que a substância do ser pensante sofra modificações.

8. E no caso de mudança de substâncias pensantes

A questão aqui divide-se em duas, segundo nas palavras de Locke é:

“Contudo, a questão é: se a mesma substância, que pensa, for mudada, pode ser a mesma pessoa ou, permanecendo a mesma, pode ser diferentes pessoas.” (Locke, p.178)

Em relação à primeira, para Locke, somente tendo um conhecimento maior acerca das substâncias pensantes é possível se determinar se a consciência pode ser transferida de uma substância pensante para outra. Locke explora assim como sendo possível (passível de refutação), de que uma mesma consciência de um ser pensante se manifeste em outro, em suas palavras:

“Que isso nunca é assim, até que tenhamos posições mais claras acerca da natureza das substâncias pensantes, resolveremos melhor recorrendo à bondade de Deus, que, tanto quanto a felicidade ou a miséria de qualquer de suas criaturas sencientes estiver implicada nisso, não transferirá de uma para outra, por um erro fatal delas, a consciência que comporta consigo recompensa e punição.” (Locke, p.179)

Enfim, pode-se dizer que a primeira questão resume-se ao ponto se uma mesma consciência pode ser manifestar ora em um ser pensante e, posteriormente em outro e se, por isso, poder-se-ia dizer que ambos seres pensantes seriam a mesma pessoa pelo fato de ambos serem constituídos da mesma consciência.

Ou então, no caso da segunda questão, se o segundo ser pensante, dotado da mesma consciência do primeiro, se dela não se recordar, seria então este segundo ser pensante uma pessoa diferente em relação ao primeiro. Nas palavras de Locke:

“Quanto à segunda parte da questão, se, permanecendo a mesma substância imaterial, pode haver duas pessoas diferentes; essa questão me parece estar construída sobre isto: se o mesmo ser imaterial, estando consciente das ações de sua duração passada, pode ser completamente despido de toda a consciência de sua existência passada e perdê-la além do poder de alguma vez recuperá-la novamente; e, como se estivesse começando um novo registro a partir de um novo período, ter uma consciência que não pode alcançar além desse novo estado”. (Locke, p.179)

O que Locke procura responder é se, ao transferir a consciência de um ser pensante para outro, se esse seria ainda a mesma pessoa ou não. A consciência une as existências, mas seria a lembrança de nossas existências anteriores que definiram se somos ou não a mesma pessoa.

9. A consciência constitui a mesma pessoa

Para Locke, independe o fato da lembrança ou não das existências anteriores de nossa consciência: uma mesma consciência constitui uma mesma pessoa.

“Contudo, apesar de a mesma substância imaterial ou alma, esteja onde estiver e em que estado for, não constituir sozinha o mesmo homem, ainda assim é claro que é a consciência, tanto quanto puder se estender, mesmo a épocas passadas, que une existências e ações muito remotas no tempo numa mesma pessoa, bem como une a existência e ações do momento imediatamente precedente, de modo que o que quer que tenha a consciência de ações presentes e passadas é a mesma pessoa a quem ambas pertencem.” (Locke, p.181)

“Nada senão a consciência pode unir existências remotas na mesma pessoa, a identidade de substância não fará isso, pois, seja qual for a substância que exista, o modo como estiver moldada, sem a consciência, não há pessoa: ou um cadáver poderia ser uma pessoa, assim como qualquer tipo de substância poderia sê-lo sem consciência.” (Locke, p.184)

10. Crítica ao conceito de identidade pessoal de Locke:

Apesar de empirista, Locke neste capítulo faz uso do racionalismo para construir sua definição de identidade pessoal. Ele faz uso da experiência do pensamento, mas racionaliza uma identidade pessoal baseada na consciência construída a partir daquilo que não se pode afirmar acerca da imaterialidade do pensamento.

A identidade pessoal de Locke contradiz sua própria visão de que o ser humano é uma tábua rasa, segundo a qual a mente humana era como uma folha em branco, que se preenchia apenas com a experiência.

Sob o ponto de vista empírico, qualquer pensamento somente ocorre por meio do corpo físico. Não se pode afirmar que exista pensamento sem que um corpo físico esteja presenta. Embora não se pode localizar fisicamente onde está o pensamento, tal como um braço ou uma perna, é no corpo físico que ele ocorre. Hoje em dia, com o avanço da tecnologia, sabe-se mais acerca da relação entre cérebro e pensamento do que antigamente. É possível observar quais as áreas do cérebro são ativadas em função de determinados tipos de pensamentos. Esse recurso reforça a ideia de que, embora ainda não se possa localizar onde exatamente uma memória ou pensamento está gravada, pode-se determinar que o pensamento depende de um órgão físico e, portanto, da mesma forma que não se pode afirmar que é o cérebro que pensa, também não se pode afirmar que o pensamento existe independente dele.

Seria mais sensato concluir que não existe pensamento se não houver um corpo físico no qual ele possa se manifestar. Embora não se possa determinar precisamente de que forma o pensamento ocorre, pode-se dizer que sua existência está condicionada à um corpo físico. Sendo assim, sem corpo físico não haveria pensamento ou, caso contrário, após nossa morte, nossa consciência e pensamentos iriam para onde? Se supormos que estes ficariam vagando até que o nascimento de um novo corpo físico precisasse ser “carregado” com uma consciência pré-existente, então também não poderíamos dizer que somos uma tábua rasa a ser preenchida a partir das experiências dos fenômenos.

Neste ensaio, seria mais sensato se Locke limitasse a existência da consciência à existência do corpo físico na qual ela se manifesta. Empiricamente falando, nascemos e morremos, ponto. Nascemos e morremos de corpo e alma.

A visão de que o pensamento é algo imaterial é uma saída racional para um fenômeno que não encontra explicação empírica, porém essa saída racional parece ter menos senso lógico do que se afirmar que o pensamento é algo fisicamente manifesto e, portanto, limitado à uma existência física.

Entretanto, se sob o ponto de vista racional me vejo obrigado a discordar de Locke, existe algo “não racional”, ou pode-se dizer metafísico, que me diz que ele está certo. Não posso explicar por que não é racional, então só me resta crer. E é por isso que, neste caso, procuro viver de forma racional, como se de fato minha identidade pessoal é minha consciência que me permite me reconhecer à mim mesmo limitada à essa existência, embora no fundo, essa mesma consciência saiba que isso não é verdade.

Como diria Mahatma Gandhi:

“Viva como se fosse morrer amanhã. Aprenda como se fosse viver para sempre.”

 

 

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