T. Hobbes – Leviatã: Parte 2: O Estado – Capítulo XVII ao XXI

CAPÍTULO XVII – Das causas, geração e definição de um ESTADO

“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita.” (HOBBES. pg.59)

“Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.” (HOBBES. pg.59)

“Pois se fosse licito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis de natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.” (HOBBES. pg.60)

“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do testado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum.” (HOBBES. pg.61)

Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos.” (HOBBES. pg.61)


 

CAPÍTULO XVIII – Dos direitos dos soberanos por instituição

“Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante ), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outro e serem protegidos dos restantes homens.

É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.” (HOBBES. pg.61)

“Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à,. confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela i é portador para outro homem, ou outra assembléia de homens. Pois são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer.” (HOBBES. pg.62)

“E quando alguns homens, desobedecendo a seu soberano, pretendem ter celebrado um novo pacto, não com homens, mas com Deus, também isto é injusto, pois não há pacto com Deus a não ser através da mediação de alguém que represente a pessoa de Deus, e ninguém o faz a não ser o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania abaixo de Deus. E esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente, mesmo perante a própria consciência de quem tal pretende, que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano.” (HOBBES. pg.62)

“Em segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libetar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração.” (HOBBES. pg.62)

“Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar reconhecer todos os ates que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos restantes.” (HOBBES. pg.62)

“Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniquidade, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio.” (HOBBES. pg.62)

“Em quinto lugar, e em conseqüência do que foi dito por último, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem ou assembléia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas. E o de fazer tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a preservação da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade vinda do exterior, quanto também, depois de perdidas a paz e a segurança, para a recuperação de ambas. E, em conseqüência.” (HOBBES. pg.63)

“Em sexto lugar, compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias. Portanto compete ao detentor do poder soberano ser o juiz, ou constituir todos os juízes de opiniões e doutrinas, como uma coisa necessária para a paz, evitando assim a discórdia e a guerra civil.” (HOBBES. pg.63)

Em sétimo lugar, pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e ais as ações que pode praticar, sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade. Porque antes da constitui) do poder soberano (conforme já foi mostrado) todos os homens tinham direito todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra. Portanto esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder soberano, é um ato ,se poder, tendo em vista a paz pública. Essas regras da propriedade (ou meum e tuum), tal como o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis.” (HOBBES. pg.63)

“Em oitavo lugar, pertence ao poder soberano a autoridade judicial, quer ,dizer, o direito de ouvir e julgar todas as controvérsias que possam surgir com ,peito às leis, tanto civis quanto naturais, ou com respeito aos fatos.” (HOBBES. pg.63)

“Em nono lugar, pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com iras nações e Estados. Quer dizer, o de decidir quando ela, a guerra, corresponde ao bem comum, e qual a quantidade de forças que devem ser reunidas, oradas e pagas para esse fim, e de levantar dinheiro entre os súditos, a fim de pagar suas despesas.” (HOBBES. pg.63)

“Em décimo lugar, compete à soberania a escolha de todos os conselheiros, ministros, magistrados e funcionários, tanto na paz como na guerra. Dado que o soberano está encarregado dos fins, que são a paz e a defesa comuns, entende-se que ele possui o poder daqueles meios que considerar mais adequados para seu propósito.” (HOBBES. pg.63)

“Em décimo primeiro lugar, é confiado ao soberano o direito de recompensar com riquezas e honras, e o de punir com castigos corporais ou pecuniários, ou com a ignomínia, a qualquer súdito, de acordo com a lei que previamente estabeleceu.” (HOBBES. pg.64)

“São estes os direitos que constituem a essência da soberania, e são as marcas pelas quais se pode distinguir em que homem, ou assembléia de homens, se localiza e reside o poder soberano. Porque esses direitos são incomunicáveis e inseparáveis. 0 poder de cunhar moeda, de dispor das propriedades e pessoas dos infantes herdeiros, de ter opção de compra nos mercados, assim como todas as outras prerrogativas estatutárias, pode ser transferido pelo soberano, sem que por isso perca o poder de proteger seus súditos.” (HOBBES. pg.64)

“Do mesmo modo que o poder, assim também a honra do soberano deve ser maior do que a de qualquer um, ou a de todos os seus súditos. Porque é na soberania que está a fonte da honra. Os títulos de lorde, conde, duque e príncipe são suas criaturas. Tal como na presença do senhor os servos são iguais, sem honra de qualquer espécie, assim também o são os súditos na presença do soberano. E embora alguns tenham mais brilho, e outros menos, quando não estão em sua presença, perante ele não brilham mais do que as estrelas na presença do sol.” (HOBBES. pg.64)

“Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em suas mãos poder tão ilimitado. Geralmente os que vivem sob um monarca pensam que isso é culpa da monarquia, e os que vivem sob o governo de uma democracia, ou de outra assembléia soberana, atribuem todos os inconvenientes a essa forma de governo. Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos.” (HOBBES. pg.64)


 

CAPÍTULO XIX – Das diversas espécies de governos por instituição, e da sucessão do poder soberano

“A diferença entre os governos consiste na diferença do soberano, ou pessoa representante de todos os membros da multidão. Dado que a soberania ou reside em um homem ou em uma assembléia de mais de um, e que em tal assembléia ou todos têm o direito de participar, ou nem todos, mas apenas certos homens distinguidos dos restantes, torna-se evidente que só pode haver três espécies de governo. Porque o representante é necessariamente um homem ou mais de um, e caso seja mais de um a assembléia será de todos ou apenas de uma parte. Quando o representante é um só homem, o governo chama-se uma monarquia. Quando é uma assembléia de todos os que se uniram, é uma democracia, ou governo popular. Quando é uma assembléia apenas de uma parte, chama-se-lhe uma aristocracia. Não pode haver outras espécies de governo, porque o poder soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos.

Encontramos outros nomes de espécies de governo, como tirania e oligarquia, nos livros de história e de política. Mas não se trata de nomes de outras formas de governo, e sim das mesmas formas quando são detestadas. Pois os que estão descontentes com uma monarquia chamam-lhe tirania, e aqueles a quem desagrada uma aristocracia chamam-lhe oligarquia. Do mesmo modo, os que se sentem prejudicados por uma democracia chamam-lhe anarquia (o que significa ausência de governo), embora, creio eu, ninguém pense que a ausência de governo é uma nova espécie de governo. Pela mesma razão, também não devem as pessoas pensar que o governo é de uma espécie quando gostam dele, e de uma espécie diferente quando o detestam ou quando são oprimidos pelos governantes.” (HOBBES. pg.65)

“A diferença entre essas três espécies de governo não reside numa diferença de poder, mas numa diferença de conveniência, isto é, de capacidade para garantir a paz e a segurança do povo, fim para o qual foram instituídas. Comparando a monarquia com as outras duas, impõem-se varias observações. Em primeiro lugar, seja quem for que seja portador da pessoa do povo, ou membro da assembléia que dela é portadora, é também portador de sua própria pessoa natural. Embora tenha o cuidado, em sua pessoa política, de promover o interesse comum, terá mais ainda, ou não terá menos cuidado de promover seu próprio bem pessoal, assim como o de sua família, seus parentes e amigos. E, na maior parte dos casos, se por acaso houver conflito entre o interesse público e o interesse pessoal, preferirá o interesse pessoal, pois em geral as paixões humanas são mais fortes do que a razão. De onde se segue que, quanto mais intimamente unidos estiverem o interesse público e o interesse pessoal, mais se beneficiará o interesse público. Ora, na monarquia o interesse pessoal é o mesmo que o interesse público. A riqueza, o poder e a honra de um monarca provêm unicamente da riqueza, da força e da reputação de seus súditos. Porque nenhum rei pode ser rico ou glorioso, ou pode ter segurança, se acaso seus súditos forem pobres, ou desprezíveis, ou demasiado fracos, por carência ou dissensão, para manter uma guerra contra seus inimigos.” (HOBBES. pg.66)

“Em segundo lugar, um monarca recebe conselhos de quem lhe apraz, e quando e onde lhe apraz. Em conseqüência, tem a possibilidade de ouvir as pessoas versadas na matéria sobre a qual está deliberando, seja qual for a categoria ou a qualidade dessas pessoas, e com a antecedência que quiser em relação ao momento da ação, assim como com o segredo que quiser. Pelo contrário, quando uma assembléia soberana precisa de conselhos, só são admitidas as pessoas que desde início a tal têm direito, as quais em sua maioria são mais versadas na aquisição de riquezas do que na de conhecimentos, e darão seu conselho em longos discursos, que podem levar os homens à ação, e geralmente o fazem, mas não contribuem para orientar essa ação.” (HOBBES. pg.66)

“Em terceiro lugar, as resoluções de um monarca estão sujeitas a uma única inconstância, que é a da natureza humana, ao passo que nas assembléias, além da da natureza, verifica-se a inconstância do número. Porque a ausência de uns poucos, que poderiam manter firme a resolução, uma vez tomada (ausência que pode ocorrer por segurança, por negligência ou por impedimentos pessoais), ou a diligente aparição de uns poucos da opinião contrária, podem desfazer hoje tudo o que ontem ficou decidido.”(HOBBES. pg.66)

“Em quarto lugar, é impossível um monarca discordar de si mesmo, seja por inveja ou por interesse; mas numa assembléia isso é possível, e em grau tal que pode chegar a provocar uma guerra civil.” (HOBBES. pg.66)

“Em quinto lugar, numa monarquia existe o inconveniente de qualquer súdito poder ser, pelo poder de um só homem, e com o fim de enriquecer um favorito ou um adulador, privado de tudo quanto possui. 0 que, confesso, é um grande e inevitável inconveniente. Mas o mesmo pode também acontecer quando o poder soberano reside numa assembléia, pois seu poder é o mesmo, e seus membros se encontram tão sujeitos aos maus conselhos, ou a serem seduzidos por oradores, como um monarca por aduladores; e, tornando-se aduladores uns dos outros, servem mutuamente à cobiça e à ambição uns dos outros. E enquanto os favoritos de um monarca são poucos, e ele tem para favorecer apenas seus parentes, os favoritos de uma assembléia são muitos, e os parentes são em muito maior número que os de um monarca.” (HOBBES. pg.66)

“Em sexto lugar, há na monarquia o inconveniente de ser possível a soberania ser herdada por uma criança, ou por alguém incapaz de distinguir entre o bem e o mal. 0 inconveniente reside no fato de ser necessário que o uso do poder fique nas mãos de um outro homem, ou nas de uma assembléia, que deverá governar por seu direito e em seu nome, como curador e protetor de sua pessoa e autoridade. Mas dizer que é inconveniente pôr o uso do poder soberano nas mãos de um homem ou de uma assembléia é dizer que todo governo é mais inconveniente do que a confusão e a guerra civil.” (HOBBES. pg.66)

“Dado que a matéria de todas estas formas de governo é mortal, de modo tal que não apenas os monarcas morrem, mas também assembléias inteiras, é necessário para a conservação da paz entre os homens que, do mesmo modo que foram tomadas medidas para a criação de um homem artificial, também sejam tomadas medidas para uma eternidade artificial da vida. Sem a qual os homens que são governados por uma assembléia voltarão à condição de guerra em cada geração, e com os que são governados por um só homem o mesmo acontecerá assim que morrer seu governante. Esta eternidade artificial é o que se chama direito de sucessão.” (HOBBES. pg.68)

“Com respeito ao direito de sucessão, a maior dificuldade ocorre no caso da monarquia. E a dificuldade surge do fato de, à primeira vista, não ser evidente quem deve designar o sucessor, nem muitas vezes quem foi que ele designou. Porque em ambos estes casos é necessária maior precisão de raciocínio do que geralmente se tem o costume de aplicar. Quanto ao problema de saber quem deve designar o sucessor de um monarca que é detentor da soberana autoridade, ou seja, quem deve determinar o direito de herança (dado que os monarcas eletivos não têm a propriedade, mas apenas o uso do poder soberano), deve admitir-se que ou aquele que está no poder tem o direito de decidir a sucessão, ou esse direito volta para a multidão dissolvida. Porque a morte daquele que tem a propriedade do poder soberano deixa a multidão destituída de qualquer soberano, isto é, sem qualquer representante no qual possa ser unida e tornar-se capaz de praticar qualquer espécie de ação. Ela fica, portanto, incapaz de proceder à eleição de um novo monarca, pois cada um tem igual direito de submeter-se a quem considerar mais capaz de protegê-lo, ou então, se puder, de proteger-se a si mesmo com sua própria escapada, o que equivale a um regresso à confusão e à condição de guerra de todos os homens contra todos os homens, contrariamente ao fim para que a monarquia fora instituída. Torna-se assim evidente que, pela instituição de uma monarquia, a escolha do sucessor é sempre deixada ao juízo e vontade do possessor atual.

Quanto ao problema, que às vezes pode surgir, de saber quem foi que o atual monarca designou como herdeiro e sucessor de seu poder, este é determinado por palavras expressas, num testamento, ou por outros sinais tácitos considerados suficientes.” (HOBBES. pg.68)

“Mas na ausência de testamento e palavras expressas é preciso guiar-se por outros sinais naturais da vontade, um dos quais é o costume. Portanto, quando 0 costume é que o parente mais próximo seja o sucessor absoluto, também nesse caso é o parente mais próximo que tem direito à sucessão, visto que, se fosse diferente a vontade do que detinha o poder, facilmente ele poderia assim ter declarado quando em vida.” (HOBBES. pg.69)

‘Portanto, não constitui injúria feita ao povo que um monarca decida por testamento sua sucessão, apesar de que, por culpa de muitos príncipes, tal haja sido às vezes considerado inconveniente. Em favor da legitimidade de uma tal decisão há também um outro argumento: que sejam quais forem os inconvenientes que possam derivar da entrega de um reino a um estrangeiro, o mesmo pode também acontecer devido ao casamento com um estrangeiro, dado que o direito de sucessão pode acabar por recair nele. Todavia, isto é considerado legítimo por todos os homens.” (HOBBES. pg.69)


 

CAPÍTULO XX – Do domínio paterno e despótico

“Um Estado por aquisição é aquele onde o poder soberano foi adquirido pela força. E este é adquirido pela força quando os homens individualmente, ou em grande número e por pluralidade de votos, por medo da morte ou do cativeiro, autorizam todas as ações daquele homem ou assembléia que tem em seu poder suas vidas e sua liberdade. Esta espécie de domínio ou soberania difere da soberania por instituição apenas num aspecto: os homens que escolhem seu soberano fazem-no por medo uns dos outros, e não daquele a quem escolhem, e neste caso submetem-se àquele de quem têm medo. Em ambos os casos fazem-no por medo, o que deve ser notado por todos aqueles que consideram nulos os pactos conseguidos pelo medo da morte ou da violência. Se isso fosse verdade, ninguém poderia, em nenhuma espécie de Estado, ser obrigado à obediência.” (HOBBES. pg.69)

“Mas os direitos e conseqüências da soberania são os mesmos em ambos os casos. Seu poder não pode, sem seu consentimento, ser transferido para outrem; não pode aliená-lo; não pode ser acusado de injúria por qualquer de seus súditos; não pode por eles ser punido. É juiz do que é necessário para a paz, e juiz das doutrinas; é o único legislador, e supremo juiz das controvérsias, assim como dos tempos e ocasiões da guerra e da paz; é a ele que compete a escolha dos magistrados, conselheiros, comandantes, assim como todos os outros funcionários e ministros; é ele quem determina as recompensas e castigos, as honras e as ordens. As razões de tudo isto são as mesmas que foram apresentadas no capítulo anterior, para os mesmos direitos e conseqüências da soberania por instituição.” (HOBBES. pg.70)

“Portanto não é a vitória que confere o direito de domínio sobre o vencido, mas o pacto celebrado por este. E ele não adquire a obrigação por ter sido conquistado, isto é, batido, tomado ou posto em fuga, mas por ter aparecido e ter-se submetido ao vencedor. E o vencedor não é obrigado pela rendição do inimigo (se não lhe tiver prometido a vida) a poupá-lo, por ter-se entregue a sua discrição; o que só obriga o vencedor na medida em que este em sua própria discrição considerar bom.” (HOBBES. pg.71)

“Torna-se assim patente que uma grande família, se não fizer parte de nenhum Estado, é em si mesma, quanto aos direitos de soberania, uma pequena monarquia. E isto quer a família seja formada por um homem e seus filhos, ou por um homem e seus servos,. e por um homem e seus filhos e servos em conjunto, dos quais o pai ou senhor é o soberano.” (HOBBES. pg.71)

“De modo que aparece bem claro a meu entendimento, tanto a partir da razão quanto das Escrituras, que o poder soberano, quer resida num homem, como numa monarquia, quer numa assembléia, como nos Estados populares e aristocráticos, é o maior que é possível imaginar que os homens possam criar. E, embora seja possível imaginar muitas más conseqüências de um poder tão ilimitado, apesar disso as conseqüências da falta dele, isto é, a guerra perpétua de todos os homens com seus vizinhos, são muito piores.” (HOBBES. pg.72)


 

CAPÍTULO XXI – Da liberdade dos súditos

“Conformemente a este significado próprio e geralmente aceite da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer. Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa que não é um corpo, há um abuso de linguagem; porque o que não se encontra sujeito ao movimento não se encontra sujeito a impedimentos. Portanto, quando se diz, por exemplo, que o caminho está livre, não se está indicando qualquer liberdade do caminho, e sim daqueles que por ele caminham sem parar. E quando dizemos que uma doação é livre, não se está indicando qualquer liberdade da doação, e sim do doador, que não é obrigado a fazê-la por qualquer lei ou pacto. Assim, quando falamos livremente, não se trata da liberdade da voz, ou da pronúncia, e sim do homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da que usou. Por último, do uso da expressão livre arbítrio não é possível inferir qualquer liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação, mas apenas a liberdade do homem; a qual consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer. O medo e a liberdade são compatíveis: como quando alguém atira seus bens ao mar com medo de fazer afundar seu barco, e apesar disso o faz por vontade própria, podendo recusar fazê-lo se quiser, tratando-se portanto da ação de alguém que é livre. Assim também às vezes só se pagam as dívidas com medo de ser preso, o que, como ninguém impede a abstenção do ato, constitui o ato de uma pessoa em liberdade. E de maneira geral todos os atos praticados pelos homens no Estado, por medo da lei, são ações que seus autores têm a liberdade de não praticar.” (HOBBES. pg.73)

“Dado que em nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações e palavras dos homens (o que é uma coisa impossível), segue-se necessariamente que em todas as espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir, como o mais favorável a seu interesse.” (HOBBES. pg.74)

“Portanto a liberdade dos súditos está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu: como a liberdade de comprar e vender, ou de outro modo realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos conforme achar melhor, e coisas semelhantes. Não devemos todavia concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano de vida e de morte. Porque já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a um súdito pode, sob qualquer pretexto, ser propriamente chamado injustiça ou injúria. Porque cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo soberano, de modo que a este nunca falta o direito seja ao que for, a não ser na medida em que ele próprio é súdito de Deus, e consequentemente obrigado a respeitar as leis de natureza.” (HOBBES. pg.74)

“Passando agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, quais são as coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em que criamos um Estado. Ou então, o que é a mesma coisa, qual a liberdade que a nós mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações (sem exceção) do homem ou assembléia de quem fazemos nosso soberano.” (HOBBES. pg.75)

“Portanto, em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto. Já no capítulo 14 mostrei que os pactos no sentido de cada um abster-se de defender seu próprio corpo são nulos. Portanto, Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer. Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade, relativamente a um crime que cometeu, não é obrigado (a não ser que receba garantia de perdão) a confessá-lo, porque ninguém (conforme mostrei no mesmo capítulo) pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio. Por outro lado, o consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo, ou assumo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há qualquer espécie de restrição a sua antiga liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me quando ele mo ordena. Uma coisa é dizer mata-me, ou a meu companheiro, se te aprouver, e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro. Segue-se portanto que Ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem. Por conseqüência, que a obrigação que às vezes se pode ter, por ordem do soberano, de executar qualquer missão perigosa ou desonrosa, não depende das palavras de nossa submissão, mas da intenção, a qual deve ser entendida como seu fim. Portanto, quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania, não há liberdade de recusar; mas caso contrário há essa liberdade.”(HOBBES. pg.75)

“Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado.” (HOBBES. pg.76)

“Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir, conformememte a sua discrição.” (HOBBES. pg.76)

“Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum. A soberania é a alma do Estado, e uma vez separada do corpo os membros deixam de receber dela seu movimento. O fim da obediência é a proteção, e seja onde for que um homem a veja, quer em sua própria espada quer na de um outro, a natureza manda que a ela obedeça e se esforce por conservá-la.” (HOBBES. pg.76)

“Se um monarca renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos voltam à absoluta liberdade da natureza. Porque, embora a natureza possa declarar quem são seus filhos, e quem é o parente mais próximo, continua dependendo de sua própria vontade (conforme se disse no capítulo anterior) quem deverá ser o herdeiro. Assim, se ele não tiver herdeiro não há mais soberania nem sujeição.” (HOBBES. pg.77)

“Se um monarca vencido na guerra se fizer súdito do vencedor, seus súditos ficam livres da obrigação anterior, e passam a ter obrigação para com o vencedor.” (HOBBES. pg.77)


 

REFERÊNCIAS

HOBBES, Thomas de M. Leviatã. [tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva].

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